terça-feira, março 10, 2009

-É já, Titi! Vamos ao oratório! Quero que fique tudo aqui assombrado! Foi o que disse o meu amigo alemão: "Essa relíquia, ao destapar-se, é de ficar uma família inteira azabumbada!..."Deslumbrada, a Titi ergueu-se de mãos postas. Eu corri a prover-me de um martelo. Quando voltei, o Doutor Margaride, grave, calçava as suas luvas pretas... E atrás da senhora Dona Patrocínio, cujos cetins faziam no sobrado um ruge-ruge de vestes de prelado, penetramos no corredor onde o grande bico de gás silvava dentro do seu vidro fosco. Ao fundo a Vicência e a cozinheira espreitavam com os seus rosários na mão.O oratório resplandecia. As velhas salvas de prata, batidas pelas chamas das velas de cera, punham no fundo do altar um brilho branco de glória. Sobre a candidez das rendas lavadas, entre a neve fresca das camélias - as túnicas dos santos, azuis e vermelhas, com o seu lustre de seda, pareciam novas, especialmente talhadas nos guarda-roupas do céu para aquela rara noite de festa... Por vezes o raio de uma auréola tremia, despedia um fulgor, como se na madeira das imagens corressem estremecimentos de júbilo. E na sua cruz de pau preto, o Cristo, riquíssimo, maciço, todo de ouro, suando ouro, sangrando ouro, reluzia preciosamente.- Tudo com muito gosto! Que divina cena! - murmurou o Doutor Margaride, deliciado na sua paixão do grandioso.Com piedosos cuidados coloquei o caixote na almofada de veludo; vergado, rosnei sobre ele uma Ave; depois, ergui a toalha que o cobria, e com ela no braço, tendo escarrado solenemente, falei:- Titi, meus senhores... Eu não quis revelar ainda a relíquia que vem aqui no caixotinho, porque assim mo recomendou o senhor Patriarca de Jerusalém... Agora é que vou dizer... Mas antes de tudo, parece-me bem a pelo explicar que tudo cá nesta relíquia, papel, nastro, caixotinho, pregos, tudo é santo! Assim por exemplo os preguinhos... são da Arca de Noé... Pode ver, senhor Padre Negrão, pode apalpar! São os da Arca, até ainda enferrujados... E tudo do melhor, tudo a escorrer virtude! Além disso quero declarar diante de todos que esta relíquia pertence aqui à Titi, e que lha trago para lhe provar que em Jerusalém não pensei senão nela, e no que Nosso Senhor padeceu, e em lhe arranjar esta pechincha...- Comigo te hás de ver sempre, filho! - tartamudeou a horrenda senhora, enlevada.Beijei-lhe a mão, selando este pacto de que a Magistratura e a Igreja eram verídicas testemunhas. Depois, retomando o martelo:E agora, para que cada um esteja prevenido e possa fazer as orações que mais lhe calharem, devo dizer o que é a relíquia...Tossi, cerrei os olhos:- É a coroa de espinhos!Esmagada, com um rouco gemido, a Titi aluiu sobre o caixote, enlaçando-o nos braços trêmulos... Mas o Margaride coçava pensativamente o queixo austero; Justino sumira-se na profundidade dos seus colarinhos; e o ladino Negrão escancarava para mim uma bocaça negra, de onde saía assombro e indignação! Justos céus! Magistrados e sacerdotes evidenciavam uma incredulidade - terrível para a minha fortuna!Eu tremia, com suores - quando o Padre Pinheiro, muito sério, convicto, se debruçou, apertou a mão da Titi a felicitá-la pela posição religiosa a que a elevava a posse daquela relíquia. Então, cedendo à forte autoridade litúrgica de Padre Pinheiro, todos, em fila, numa congratulação, estreitaram os dedos da babosa senhora.Estava salvo! Rapidamente, ajoelhei à beira do caixote, cravei o formão na fenda da tampa, alcei o martelo em triunfo...- Teodorico! Filho! - berrou a Titi, arrepiada, como se eu fosse martelar a carne viva do Senhor.- Não há receio, Titi! Aprendi em Jerusalém a manejar estas cousinhas de Deus!...Despregada a tábua fina, alvejou a camada de algodão. Ergui-a com terna reverência; e ante os olhos extáticos, surgiu o sacratíssimo embrulho de papel pardo, com o seu nastrinho vermelho.- Ai que perfume! Ai! ai, que eu morro! - suspirou a Titi a esvair-se de gosto beato, com o branco do olho aparecendo por sobre o negro dos óculos.Ergui-me, rubro de orgulho:- É à minha querida Titi, só a ela, que compete, pela sua muita virtude, desembrulhar o pacotinho!...Acordando do seu langor, trêmula e pálida, mas com a gravidade de um pontífice, a Titi tomou o embrulho, fez mesura aos santos, colocou-o sobre o altar; devotamente desatou o nó do nastro vermelho; depois, com o cuidado de quem teme magoar um corpo divino, foi desfazendo uma a uma as dobras do papel pardo... Uma brancura de linho apareceu... A Titi segurou-a nas pontas dos dedos, repuxou-a bruscamente - e sobre a ara, por entre os santos, em cima das camélias, aos pés da cruz - espalhou-se, com laços e rendas, a camisa de dormir da Mary!A camisa de dormir da Mary! Em todo o seu luxo, todo o seu impudor, enxovalhada pelos meus abraços, com cada prega fedendo a pecado! A camisa de dormir da Mary! E pregado nela por um alfinete, bem evidente ao clarão das velas, o cartão com a oferta em letra encorpada: - "Ao meu Teodorico, meu portuguesinho possante, em lembrança do muito que gozamos!" Assinado, M. M.... A camisa de dormir da Mary!

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