sexta-feira, março 27, 2009

"As desastradas declarações do Papa sobre o preservativo deram origem a dois tipos de reacção. A primeira foi a velha e clássica indignação: como é possível que Bento XVI tenha sequer sugerido, às portas de uma África com 33 milhões de seropositivos, que o uso do preservativo pode prejudicar a luta contra a sida? É uma reacção justa, que sublinha o óbvio. A segunda reacção, porém, pretende deitar mão a uma espécie de tolerância laica pelas idiossincrasias do catolicismo, e é aquela que eu gostava de discutir aqui. Foi a reacção de Vasco Pulido Valente no Público e, neste jornal, de João Marcelino. Utilizando as palavras do director do DN: o Papa "limitou-se a repetir a posição oficial da Igreja sobre o preservativo", e tendo em conta que ele é "um pregador de ideias", faz todo o sentido "alertar para as questões da alma e do espírito - coisa que tanta falta faz a uma sociedade dominada pelo hedonismo".Ora, esta posição pressupõe que a condenação dos métodos contraceptivos faça parte de algum núcleo central do ensinamento cristão. "É necessário perceber a importância dos princípios", escreveu João Marcelino. Só que aquilo que se faz na intimidade com um pedaço de borracha não é propriamente a pedra angular da Igreja Católica. O problema em relação à proibição da contracepção pela Igreja é que, exceptuando os prelados do Opus Dei e, vá lá, João César das Neves, são muito poucos os que conseguem ver onde estão os "princípios" nesta questão - e por que razão um preservativo pode afectar a relação com Deus. Quando se pega no caso do aborto, por exemplo, é com certeza possível discordar da posição da Igreja, mas aquilo que ela defende é perfeitamente claro: se acreditarmos que a vida se inicia no momento da fecundação, então ela deve ser protegida a todo o custo. No caso dos métodos contraceptivos, onde raio está a clareza da argumentação?Bom, podemos sempre voltar à encíclica Humanae Vitae, que em 1968 estabeleceu a doutrina oficial da Igreja sobre o tema. Os argumentos estão lá: o homem não pode, por sua livre iniciativa, alterar o duplo significado do acto conjugal: o "acto unitivo" e o "acto procriador". Traduzindo em miúdos: seria ofender a "lei natural" separar o prazer do sexo da possibilidade de engravidar. Mas alguém percebe que sentido isto faz? Eu não. E não sou só eu: convém recordar que a Humanae Vitae foi precedida da constituição, pelo Vaticano, de uma vasta comissão para estudar o tema, que em 1966 emitiu um relatório defendendo que o uso de contraceptivos devia ser uma decisão livre dos casais. Paulo VI rejeitou as suas recomendações. Meus caros: não há quaisquer "princípios" em jogo na questão do preservativo. Há apenas um erro gravíssimo cometido há 40 anos, que a Igreja continua a pagar muito caro, até aos dias de hoje.
João Miguel Tavares, in Diário de Notícias

Sem comentários: