quarta-feira, abril 02, 2014

O táxi de Maria Manuela

Está pronta, finalmente. Depois de muito matutar decidiu ir de táxi para o local do patíbulo.
De táxi, sim, é mais fácil. Transportes públicos nem pensar - os três degraus da entrada do autocarro, os bancos estreitos onde não se consegue passar, os olhares das pessoas, entre enjoados e apiedados. 
Maria Manuela  não resolveu simplesmente matar-se, quer apenas desaparecer. Sabe dos estragos que um corpo decomposto e descomposto pode causar, não quer sequer que o cadáver seja imediatamente visível ou identificado pelos seus. Vai morrer sóbria e doce como sempre foi, circunspecta e  delicada, sem um grito ou um sinal de aflição. Depois de alguma hesitação, retira os brincos e o colar de prata, desenrola do pescoço o lenço de caxemira  e dobra-o cuidadosamente sobre o canapé. Conta algum dinheiro. Cinco, vinte euros que guarda  na mão fechada - não vai levar mala, nem telemóvel, nem documentos, é um corpo sem história que vai caír no vazio, um corpo sem artefactos, objectos ou penduricalhos.
Maria Manuela olha em volta para  a casa que foi sua durante vinte e cinco anos e sorri. Tudo  está no seu lugar, harmonioso e claro, ao fim da tarde a empregada virá limpar a casa de banho usada , apanhará as roupas do chão que ela não conseguiu, arrumará os chinelos tão largos dos pés com edemas. E tudo ficará assim para todo o sempre, como um retrato.
Desce no elevador, apenas três andares até ao rés-do-chão, lá fora um taxista desespera.
- Para a ponte, por favor.

terça-feira, abril 01, 2014

O táxi de maria manuela 2

Maria Manuela pensou maduramente no ato que vai realizar. mais do que quando se casou á pressa com o primeiro namorado que lhe apareceu e não mais alargou,  enfeitiçado e ciumento com tanta belezura. Pensou dias a fio em todos os métodos de suicídio e todos lhe pareceram ou demasiado falíveis, ou demasiado difíceis de concretizar para alguém tão gordo que quase lhe custa andar.
Andou horas pela internet  à procura de ideias, sentada  na cama, o computador portátil em cima da imensa barriga. No intervalo punha posts amorosos no facebook, com flores, baús e ninhos de pássaros.

O táxi de maria manuela

 Antes de sair de casa para apanhar o táxi, Maria Manuela, vestiu a gabardine beige. Não é uma gabardina de saldo, mandou-a fazer por medida, com detalhes personalizados, ligeiramente evasé para tentar ocultar os refegos das coxas.
Demorou duas horas certas,  contadas pelo relógio, a fazer a sua higiene matinal. Para uma gorda incomensurável como ela é agora, qualquer gesto rotineiro a cansa e lhe tira o fôlego. Entrar e saír do chuveiro, lavar o corpo todo, é uma pequena odisseia . Descobriu há duas semanas que já não consegue chegar com as mãos a certas zonas da carne, que agora jazem,  mais ou menos penduradas, em sítios insuspeitos. Mandou vir uma escova de lavar as costas de uma revista online e é com que esse artefacto estilo piaçaba com uma luva na ponta que agora esfrega o lombo e o rabo.
Maria Manuela já esqueceu de quando tinha dezasseis anos e era desmesuradamente bonita, uma pele completamente angelical,  um sorriso de derreter aziagos rancores. Era bela, bela de iluminuras aflitivas, bela de neoclássicos barrocos, bela de cinturas arqueadas em saias rodadas perfeitas, bela de curvas de pernas que fazem salivar, perfis ovalados, cabelos ruivos. 
Maria Manuela decidiu que se vai matar hoje.
 Tomou banho com rigor, escolheu a roupa e os sapatos. Não há muito por onde escolher quando se pesa cento e quarenta quilos num metro e sessenta e dois de altura, mas os pequenos pormenores do conforto diário ainda contam. Penteou-se com alguma garridice, perfil ovalado, cabelos de artificiosa cor, uma sombra de baton. A pele do rosto ainda intocada, insuflada de gordura,  sem uma única ruga, devolve-lhe do espelho um lampejo doce. Houve alturas em que sonhava com transplantes de cabeça - se pudesse trocava o seu corpo de obesidade mórbida por um cadáver saudável mas gostaria de manter o rosto e os cabelos, a covinha no queixo, o riso outrora tão fácil. Fantasias  de mulherio amalucado, que não há sequer cirurgia gástrica para pessoas com os seus problemas de saúde, quanto mais imaginários transplantes de cabeça. Maria Manuela cansou-se tanto em acabar de se vestir, que teve de ficar sentada, ofegante e exausta, furiosa consigo mesma por o esforço a ter feito transpirar até ficar outras vez com aquele cheiro adocicado do suor entre as pregas da gordura. Para se vingar encharcou-se em perfume Chanel rosa que a filha lhe ofereceu no natal passado.

quarta-feira, fevereiro 26, 2014

quinta-feira, janeiro 23, 2014

Porn

O putedo nada tem a  ver com a concupiscência ou com a sexualidade.
Tem a ver com o poder .

Os sobrinhos de deus

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Há católicos tão bem, tão bem, tão bem, que tratam Deus por tio. De facto, chamá-Lo pai seria ficar automaticamente irmã, ou irmão, dessa gentinha pé-descalça e malcheirosa que vai à Cova da Iria de xaile e garrafão. Tratá-Lo por Senhor seria reconhecer-se de uma condição servil, que está muito bem para as criadas e para os chauffeurs, mas que não é compatível com quem é, há várias gerações, gente de algo.

Os sobrinhos de Deus gostam muito de Jesus, porque Ele é superfantástico: andou sobre o mar e fez montes de coisas giríssimas. Gostam tanto d’Ele que até Lhe perdoam o ter sido carpinteiro, pormenor de gosto duvidoso que têm a caridade de omitir, sempre que, ao chá, falam d’Ele. Também têm muita devoção ao Espírito Santo: à família do banco, claro, pois conhecem-na toda da Quinta da Marinha e de um ror de sítios muito in, que tudo o que é gente frequenta.

Alguns foram a Fátima a pé e acharam o máximo. Levaram uns ténis de marca, roupa desportiva q. b. e um padre da moda. Rezaram imenso, tipo um terço, sei lá. O resto do tempo foi à conversa, sobretudo a cortar na casaca de uns quantos novos-ricos, um bocado beatos, que também se integraram na peregrinação (já agora, aqui para nós, mais por fervor aos sobrinhos de Deus do que a Nossa Senhora, mas note-se que isto não é ser má-língua, mas a pura verdade, à séria).

Têm imenso gosto e casas estupendas. Quando olham para um crucifixo em pau-santo, com imagem de marfim e incrustações de prata, são capazes de reconhecer o estilo, provavelmente indo-europeu, identificar a punção, pela certa de algum antigo joalheiro da Coroa, e a data, até porque, geralmente, é igualzinho a um lá de casa, ou muito parecido ao da capela da quinta. Só não vêem o Cristo, nem a coroa de espinhos, nem as chagas, que são coisas de menos importância.

Detestam essas modernices do abraço da paz ou da Igreja dos pobres, mas não é que tenham nada contra os pobres, apenas receio de doenças contagiosas.

Também não são muito fãs do senhor prior, nem do Papa Francisco, simplórios de mais para os seus gostos sofisticados. Mas derretem-se quando se cruzam, nalgum cocktail, exposição ou concerto na Gulbenkian, ou em São Carlos, com alguém que os fascine pelo seu glamour, pela sua cultura, pela sua inteligência ou poder porque, na realidade, o principal santo da sua devoção é o príncipe deste mundo.

Uma só coisa aflige os sobrinhos de Deus: que o céu, onde já têm lugar reservado, esteja mesmo, como se diz no sermão das bem-aventuranças, cheio de maltrapilhos."

http://www.publico.pt/sociedade/noticia/os-sobrinhos-de-deus-1618710