Antes de sair de casa para apanhar o táxi, Maria Manuela, vestiu a gabardine beige. Não é uma gabardina de saldo, mandou-a fazer por medida, com detalhes personalizados, ligeiramente evasé para tentar ocultar os refegos das coxas.
Demorou duas horas certas, contadas pelo relógio, a fazer a sua higiene matinal. Para uma gorda incomensurável como ela é agora, qualquer gesto rotineiro a cansa e lhe tira o fôlego. Entrar e saír do chuveiro, lavar o corpo todo, é uma pequena odisseia . Descobriu há duas semanas que já não consegue chegar com as mãos a certas zonas da carne, que agora jazem, mais ou menos penduradas, em sítios insuspeitos. Mandou vir uma escova de lavar as costas de uma revista online e é com que esse artefacto estilo piaçaba com uma luva na ponta que agora esfrega o lombo e o rabo.
Maria Manuela já esqueceu de quando tinha dezasseis anos e era desmesuradamente bonita, uma pele completamente angelical, um sorriso de derreter aziagos rancores. Era bela, bela de iluminuras aflitivas, bela de neoclássicos barrocos, bela de cinturas arqueadas em saias rodadas perfeitas, bela de curvas de pernas que fazem salivar, perfis ovalados, cabelos ruivos.
Maria Manuela decidiu que se vai matar hoje.
Tomou banho com rigor, escolheu a roupa e os sapatos. Não há muito por onde escolher quando se pesa cento e quarenta quilos num metro e sessenta e dois de altura, mas os pequenos pormenores do conforto diário ainda contam. Penteou-se com alguma garridice, perfil ovalado, cabelos de artificiosa cor, uma sombra de baton. A pele do rosto ainda intocada, insuflada de gordura, sem uma única ruga, devolve-lhe do espelho um lampejo doce. Houve alturas em que sonhava com transplantes de cabeça - se pudesse trocava o seu corpo de obesidade mórbida por um cadáver saudável mas gostaria de manter o rosto e os cabelos, a covinha no queixo, o riso outrora tão fácil. Fantasias de mulherio amalucado, que não há sequer cirurgia gástrica para pessoas com os seus problemas de saúde, quanto mais imaginários transplantes de cabeça. Maria Manuela cansou-se tanto em acabar de se vestir, que teve de ficar sentada, ofegante e exausta, furiosa consigo mesma por o esforço a ter feito transpirar até ficar outras vez com aquele cheiro adocicado do suor entre as pregas da gordura. Para se vingar encharcou-se em perfume Chanel rosa que a filha lhe ofereceu no natal passado.
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