quarta-feira, novembro 28, 2007

A Propósito de Ti

"Somos felizes. Acabámos de pagar a casa em Outubro, fechámos a marquise, substituímos a alcatifa por tacos, nenhum de nós foi despedido, as prestações do Opel estão no fim. Somos felizes: preferimos a mesma novela, nunca discutimos por causa do comando, quando compras a «TV Guia» sublinhas a encarnado os programas que me interessam, lembras-te sempre da hora daquela série policial que eu gosto tanto, com o preto cheio de anéis a dar cabo dos Italianos da Mafia.

Somos felizes: aos domingos vamos ao Feijó visitar a tua mãe, ficas a conversar com ela na cozinha e eu passeio com o Indiano, filho de uma senhora que mora lá no pátio; assistimos ao básquete dos sobrinhos dele no pavilhão polivalente, comemos uma salada de polvo no café durante os resumos do futebol, e voltamos para Almada à noite, com o jantar que atua mãe nos deu numa marmita embrulhada no «Record», a tempo de assistir às perguntas sobre «factos e personalidades» do concurso em que a apresentadora se parece com a tua prima Beatriz, a que montou um pronto-a-vestir no centro comercial do Prior Velho.

Somos felizes. A prova de que somos felizes é que comprámos o cão no mês passado e foi por causa do cão que tirámos a alcatifa, que as unhas do animalzinho rasparam de tal forma que já se notava o cimento do construtor por baixo. Andamos a ensiná-lo a não estragar as cortinas, pusemos-lhe uma coleira contra as pulgas depois de uma semana inteira a coçarmo-nos sem entender porquê, passados dois dias o Fernando começou a coçar-se também e a acusar-me de cheirar a cachorro e levar pulgas para a repartição, o chefe avisou-me do fundo

- Veja-me lá isso, Antunes

de modo que pus também uma coleira contra as pulgas debaixo da camisa e o Dionísio, espantado

- Deste em cónego ou quê?

E eu, envergonhado, a abotoar o colarinho

- É uma coisa chinesa para o reumatismo, a Jóia Magnética Vitafor é uma porcaria ao pé disto

e como nas Finanças se respeitam o reumatismo e as coisas chinesas, nunca mais me maçaram.

Às segundas, quartas e sextas sou eu que vou lá abaixo levar o cão a fazer chichi contra a palmeira, às terças, quintas e sábados é a tua vez, e o que não vai lá abaixo fica à janela a olhar o bichinho a cheirar os pneus dos automóveis, com um ar sério de quem resolve problemas de palavras cruzadas que os cães têm sempre que farejam postes e Unos.

Somos felizes. Por isso não me preocupei no Sábado com o animal, muito entretido na praceta, e tu atrás dele, de trela enrolada na mão, sem olhares para cima nem dizeres adeus, a nadares devagarinho até desapareceres na travessa para a estação dos barcos. Foi anteontem. Às onze horas tirei o cozido do forno e comi sozinho. Ontem também. Hoje também. Não levaste roupa, nem pinturas, nem a fotografia do teu pai, nada.

Ainda há bocadinho acabei de gravar o episódio da novela para ti. A tua mãe telefonou, a saber porque é que não fomos ao Feijó, e eu disse-lhe que daqui a nada lhe ligavas. Porque tenho a certeza de que tu não te foste embora, visto sermos felizes. Tão felizes que um dia destes vou comprar um micro-ondas para, se chegares a casa, teres a comida quente à tua espera."

págs. 39 a 40 (1ª edição)

A Solidão Das Mulheres Divorciadas

A Solidão Das Mulheres Divorciadas

"Aos fins-de-semana, quando não saio com a minha prima Bé, fico em casa a ver televisão. Ver televisão quer dizer regar as plantas da marquise, ler o meu horóscopo nas revistas, desfazer o tricot do domingo anterior, mudar de canal de vinte em vinte segundos a pensar em matar-me. O problema é que assim que me levanto para tomar os lexotans todos de uma vez a minha mãe telefona-me de Alcobaça a saber como estou, oiço-lhe os gritos no atendedor de chamadas (a minha mãe, que tem um medo danado dos telefones, sempre falou aos gritos) e como não é possível a gente suicidar-se e conversar com a mãe ao mesmo tempo desisto das pastilhas e garanto-lhe que estou óptima, que não tenho febre, que fumo no máximo três cigarros por dia, que como bem, que não emagreci

(- De certeza que não emagreceste?)

que para a semana a visito em Alcobaça sem falta e que qualquer dia, palavra, encontro um rapaz como deve ser

(- Não acredito que não haja um rapaz como deve ser no teu emprego, filha)

e me torno a casar, e desligo o telefone com um tal cansaço e uma tal dor de cabeça que a única coisa de que tenho vontade é de um aspegic e silêncio, e deixei de ter ganas de me suicidar visto que uma pessoa não consegue matar-se se estiver maldisposta.

Nos fins-de-semana em que saio com a minha prima Bé, vamos à Loja das Meias e à Escada sonhar com blazers de cachemira

(- Pode ser que com o subsídio de Natal lá chegue)

e casacos compridos, chateamo-nos como nos peruas nos filmes de que os jornais gostam, encontramo-nos num bar com colegas da escola dela que descobriram na semana passada, um restaurante italiano baratíssimo em Alcântara, e já me sucedeu acordar, aos domingos de manhã num apartamento de Campo de Ourique ou do Beato ao lado de professores de Matemática com iogurtes fora do prazo no congelador, um chinelo esquecido no bidé e um cinzeiro de folha a transbordar beatas no soalho, junto de uma chávena de café quebrada. Incapaz de tomar banho num chuveiro em que faltam sabonete e a água para além de se achar ocupado por um montão de jornais velhos, volto a toque de caixa para o Lumiar sem me despedir do barbudo que ressona de queixo na almofada

(- Não acredito que a Bé não conheça um rapaz como deve ser)

com um ombro fora do pijama descosido, e adormeço até que os gritos de Alcobaça me acordam, de coração aos pulos para inquirirem, ansiosos, no atendedor de chamadas, se tenho abusado dos fritos.

Não abuso dos fritos, não abuso do tabaco, não abuso do álcool, não abuso do sexo, não abuso de nada, mãe: oiço crescer o pêlo da alcatifa, mudo de vinte em vinte segundos de canal e leio o meu horóscopo na penúltima página dos magazines femininos, a seguir ao caderno da moda e a um artigo que explica como um cinto de ligas e uns sapatos vermelhos poderiam mudar a minha vida afectiva. Com um cinto de ligas os iogurtes fora do prazo desapareceriam do congelador? Com sapatos vermelhos encontraria chuveiros sem jornais? O meu horóscopo para esta semana, dividido como sempre em três partes, Saúde (cuidado com o fígado!), Finanças (atenção às despesas excessivas!) e Amor, prevê para quarta-feira, no que respeita às paixões, um encontro inesperado que me alterará para sempre a existência. Quarta-feira foi ontem e o encontro inesperado que tive consistiu em esbarrar com o meu ex-marido no metropolitano: deixou crescer o bigode, vinha acompanhado por uma mulata com metade da idade dele e nem sequer me viu. Ter-me-á visto alguma vez? Em todos os canais de televisão só passam novelas brasileiras. Oiço a chuva de Outubro contra os vidros e o casal do andar de cima a gemer ao ritmo da cama. Se me levantar para tomar os lexotans todos a minha mãe vai desatar aos gritos no atendedor de chamadas, de modo que o melhor é ficar quietinha no sofá a olhar as plantas e o retrato do meu sobrinho bebé sem pensar no suicídio. Para quê? Durante seis meses poupo nos almoços (uma bica, um croissant e um pastel de bacalhau comidos em pé ali no Centro) compro o blazer da Escada e uns sapatos vermelhos, a colega que vende ouro no escritório prometeu baixar-me as prestações do anel, e passo o serão sozinha, de blazer, sapatos e cachucho, lindíssima, a mudar de canal e a ouvir o pêlo da alcatifa crescer."

Crónicas
A Lobo Antunes

págs. 33 a 35 (1º edição)

sábado, novembro 24, 2007

O José Cid está em alta entre os teens.
- Este desenho é da minha irmã morta - explicou a miúda de cinco anos com um rabisco na não. Às vezes sonho com ela e tenho medo.

A psicóloga clínica descobriu mais tarde que a mãe tinha tido um feto com malformação grave ( trissomia 21 ) e tinha feito aborto terapêutico em idade gestacional avançada. Morbidamente, levou sempre a criança mais nova a todas as consultas e ecografias, partilhando com ela dos dilemas existenciais de tal decisão, até ao último internamento.

A menina desenhou no papel uns rabiscos disformes de um monstro inominável.
Chama-se morte.
E não é a morte em sentido biológico.

LIDL

Gosto de ir ao LIDL. É barato. Tão barato que nos faz questionar os preços às vezes escandalosos que gastamos noutros sítios.O LIDL é o sítio dos pobres. Tudo ali é mais triste - as caixas de pagamento não reluzem de facilidades ou cartões promissores, os empregados não desejam bons-dias plastificados.
As pessoas alinham-se pálidas e contam as mercadorias antes do pagamento, fazendo cálculos mentais.Fatos de treino domingueiros, roupas de feira, sacos de plástico, muitos imigrantes, idosos, mulheres com a pobreza escrita na cara. Não se trata daquela pobreza óbvia mas desta pobreza lusa taciturna e envergonhada que se refugia muitas vezes nas aparências do novo riquismo.
POnho-me a pensar em algumas das minhas colegas na fila de pagamento do LIDl e suspeito que nem imaginam que tal sítio existe - aquelas caras, meia dúzia de compras postas à pressa sobre o rolamento de metal, camisolas puídas, cabelos sem cabeleireiro, olheiras, as notas contadas uma a uma, dialectos pouco usuais.

SEmpre que vou ao LIL venho de lá com uma sensação de vaga vergonha e desconforto. Vergonha por esta pobreza tão próxima, tão tangível que torna as nossas pequenas queixas ridículas e os nosso pequenos egoísmos ...
Que tinha muita urgência, dizia a mulher ao telemóvel. Que estava viúva com um menino pequeno. Tinha acabado de ver o anúncio no jornal e ligara logo para aquele número. Não era para se gabar mas é uma cozinheira de mão cheia. Aprendera com a mãe, uma bodeira à moda antiga, e começara trabalhar nas lides da cozinha aos 12 anos.Tem 46 anos explicou, mas cheia de genica. Anotou a hora da entrevista. 500 euros por mês? Das oito às cinco? ai que bom, que bom, não meta mais ninguém segunda lá estou...
- Então amor, safei-me bem? Perguntou ao homem sentado ao seu lado numa carruagem do alfa.
Ao lado o amante sorria.
- Claro que sim, amor. Este já está. SE arranjares mais umas horas extra e eu escuso de trabalhar.

Passaram o resto da viagem para lisboa a discutir o divórcio dele ( ás voltas com um processo judicial) enquanto um miúdo pálido, volteava por ali.

Ideias delirantes


O fundamentalismo religioso transforma a pessoas inteligentes em indivíduos delirantes.
Ao ler o que alguns escrevem sob o pretexto da crónica ficcional compreende-se melhor a suas fantasias mais profundas. Pobres almas.

O que estes indivíduos não fariam se tivessem um naco de poder político…

terça-feira, novembro 06, 2007

Pedro Arroja, conhecido pelo seu antisemitismo entrou agora numa orgia ideológica do fundamentalismo religioso.
Curiosamente os argumentos que utiliza têm sido esgrimidos de uma forma mais subtil a bastante mais inteligente por Ratzinger himself e algumas seitas catolaicas militantes.
O pressuposto é que as sociedades seculares , livres , modernas e democráticas, a que nos habituámos nos últimos dois séculos a considerar como o paradigma da “cultura ocidental”, estão em risco.
Os ateus e os agnósticos vão deixar de estar na moda e vêm aí tempos difíceis para eles “

Mas o risco de viver em liberdade e democracia (algo que só o secularismo permitiu em toda a história da humanidade) e o emergir do fundamentalismo religioso islâmico, associado ao terrorismo e à violência extrema, são para estes ideólogos , justificados e justificáveis:
“Apesar de alguns desencontros históricos, as religiões cristã e muçulmana acabaram por saber conviver sob condições de respeito e tolerância mútua. Aquilo que os muçulmanos ressentem não são os valores cristãos que eles, em parte, partilham e já conhecem há muitos séculos. Aquilo que eles ressentem é a nossa falta de valores e, em particular, o secularismo militante, o desaparecimento da sociedade da ideia que é a fonte de todos os valores - a ideia de Deus.”
OU seja o fundamentalismo religioso é justificável e a culpa dele é o laicismo do estado.

Ratzinger escreveu isso mesmo há uns tempos atrás e as posições públicas do Vaticano relativas aos direitos humanos e ao estado laico são extremamente próximas das dos lideres muçulmanos.

Tem razão numa coisa o Arroja.
Advinham-se tempos difíceis para os que acreditam na liberdade.
Volto ao post anterior.
Faz-lhes falta uma manhã sentados num banco de consulta do IPO.

Consulta externa de oncologia

Os locais de espera para consultas do IPO devim ser ponto obrigatório de passagem por políticos e pseudoelites intelectuais. De preferência como observadores participantes, com o processo clínico na mão sem resultado de biópsia.

São 11horas e no banco ao lado um velho de 76 anos cantarola o hino nacional para uma jovem que ali conheceu e lhe confessou em amena cavaqueira que não faz a menor ideia de como se canta. Já falou de angola, moçambique, de história, do estado novo e política, com uma leveza de antiga quarta classe que a jovem de trinta e poucos não consegue nem de perto nem de longe acompanhar.
O velho compõe a manta da mulher, exausta, na cadeira de rodas ao lado, depois de uma sessão de quimioterapia.
Mulheres estejam caladas lançou-me um simpático desafio que circula na net:
“para dizermos o que diz na pag 161 do livro que estamos a ler..”

Assim de repente abro o livro na referida página e cito, ao acaso, alguns parágrafos:

“Cerca de 50% dos suicídios envolvendo mulheres, em todo o mundo acontecem na sociedade chinesa. As características únicas do suicídio na sociedade chinesa estão talvez relacionadas com um contexto sócio-cultural particular caracterizado por uma compreensão local do suicídio como um acto moral ou uma forma de protesto, (…), por alterações económicas e pelo factores de stress que acompanham as respectivas reformas, pela opressão exercida sobre as mulheres numa sociedade patriarcal, que transforma o suicídio numa alternativa trágica a situações sociais insuportáveis (…) "

Quartilho, AJR (2001) Cultura, psiquiatria e Medicina, Coimbra:Quarteto

quinta-feira, novembro 01, 2007

Bolinhos e bolinhós

Mãe, a Maria está no quarto a treinar a sua bruxidade.

Ranking

Uma relação entre número de alunos (número de exames) e posição no ranking (nota nos exames) de escolas privadas e públicas. O que observamos é que as escolas privadas não têm resultados muito diferentes das públicas, que a diferença entre médias é maior em escolas com menos alunos e que só nessas, onde a selecção social, económica e académica é naturalmente maior, algumas escolas privadas se destacam. Um dado: a média das escolas privadas é de 10,75, a das públicas de 10,05.



portugal contemporâneo: na massa do sangue - O antisemitismo justificado

E, por falar em "bodes expiatórios" ou análises distorcidas de fragmentos da história


portugal contemporâneo: na massa do sangue

Para a gente se rir

“Seria "como um boneco de cera aí para as brincadeiras", num "reinar" que uns dizem "saudável". "Para a gente se rir". Um homem que fora bonito na juventude, rapagão quase perfeito, de mãos erguidas no ar a segurar a arma da tropa. E um sorriso na expressão. Com a vida entortada por um divórcio indesejado na passagem por Lisboa, "deu-se à paixão, à tristeza. Começou a andar com a cabeça de lado" e a "dedicar-se à bebida". Era o "Maná", uma pessoa "sensivelmente normal", seja lá o que isso for na compreensão de quem fez dele um bobo da corte. Porque "era bondoso".
A bondade ou uma certa simplicidade de coração podem transformar alguém mais frágil ( pelo seu comportamento, pela sua idade, pelo seu estado de saúde ou pela sua sensibilidade )em vítima.
O bode expiatório “natural” de um grupo de pessoas ditas normais que descarrega o seu gozo sádico num outro ser humano.
Não é nada de enovo.
O cinismo e a desconfiança para com os outros são mais protectores.