quarta-feira, novembro 28, 2007

A Solidão Das Mulheres Divorciadas

A Solidão Das Mulheres Divorciadas

"Aos fins-de-semana, quando não saio com a minha prima Bé, fico em casa a ver televisão. Ver televisão quer dizer regar as plantas da marquise, ler o meu horóscopo nas revistas, desfazer o tricot do domingo anterior, mudar de canal de vinte em vinte segundos a pensar em matar-me. O problema é que assim que me levanto para tomar os lexotans todos de uma vez a minha mãe telefona-me de Alcobaça a saber como estou, oiço-lhe os gritos no atendedor de chamadas (a minha mãe, que tem um medo danado dos telefones, sempre falou aos gritos) e como não é possível a gente suicidar-se e conversar com a mãe ao mesmo tempo desisto das pastilhas e garanto-lhe que estou óptima, que não tenho febre, que fumo no máximo três cigarros por dia, que como bem, que não emagreci

(- De certeza que não emagreceste?)

que para a semana a visito em Alcobaça sem falta e que qualquer dia, palavra, encontro um rapaz como deve ser

(- Não acredito que não haja um rapaz como deve ser no teu emprego, filha)

e me torno a casar, e desligo o telefone com um tal cansaço e uma tal dor de cabeça que a única coisa de que tenho vontade é de um aspegic e silêncio, e deixei de ter ganas de me suicidar visto que uma pessoa não consegue matar-se se estiver maldisposta.

Nos fins-de-semana em que saio com a minha prima Bé, vamos à Loja das Meias e à Escada sonhar com blazers de cachemira

(- Pode ser que com o subsídio de Natal lá chegue)

e casacos compridos, chateamo-nos como nos peruas nos filmes de que os jornais gostam, encontramo-nos num bar com colegas da escola dela que descobriram na semana passada, um restaurante italiano baratíssimo em Alcântara, e já me sucedeu acordar, aos domingos de manhã num apartamento de Campo de Ourique ou do Beato ao lado de professores de Matemática com iogurtes fora do prazo no congelador, um chinelo esquecido no bidé e um cinzeiro de folha a transbordar beatas no soalho, junto de uma chávena de café quebrada. Incapaz de tomar banho num chuveiro em que faltam sabonete e a água para além de se achar ocupado por um montão de jornais velhos, volto a toque de caixa para o Lumiar sem me despedir do barbudo que ressona de queixo na almofada

(- Não acredito que a Bé não conheça um rapaz como deve ser)

com um ombro fora do pijama descosido, e adormeço até que os gritos de Alcobaça me acordam, de coração aos pulos para inquirirem, ansiosos, no atendedor de chamadas, se tenho abusado dos fritos.

Não abuso dos fritos, não abuso do tabaco, não abuso do álcool, não abuso do sexo, não abuso de nada, mãe: oiço crescer o pêlo da alcatifa, mudo de vinte em vinte segundos de canal e leio o meu horóscopo na penúltima página dos magazines femininos, a seguir ao caderno da moda e a um artigo que explica como um cinto de ligas e uns sapatos vermelhos poderiam mudar a minha vida afectiva. Com um cinto de ligas os iogurtes fora do prazo desapareceriam do congelador? Com sapatos vermelhos encontraria chuveiros sem jornais? O meu horóscopo para esta semana, dividido como sempre em três partes, Saúde (cuidado com o fígado!), Finanças (atenção às despesas excessivas!) e Amor, prevê para quarta-feira, no que respeita às paixões, um encontro inesperado que me alterará para sempre a existência. Quarta-feira foi ontem e o encontro inesperado que tive consistiu em esbarrar com o meu ex-marido no metropolitano: deixou crescer o bigode, vinha acompanhado por uma mulata com metade da idade dele e nem sequer me viu. Ter-me-á visto alguma vez? Em todos os canais de televisão só passam novelas brasileiras. Oiço a chuva de Outubro contra os vidros e o casal do andar de cima a gemer ao ritmo da cama. Se me levantar para tomar os lexotans todos a minha mãe vai desatar aos gritos no atendedor de chamadas, de modo que o melhor é ficar quietinha no sofá a olhar as plantas e o retrato do meu sobrinho bebé sem pensar no suicídio. Para quê? Durante seis meses poupo nos almoços (uma bica, um croissant e um pastel de bacalhau comidos em pé ali no Centro) compro o blazer da Escada e uns sapatos vermelhos, a colega que vende ouro no escritório prometeu baixar-me as prestações do anel, e passo o serão sozinha, de blazer, sapatos e cachucho, lindíssima, a mudar de canal e a ouvir o pêlo da alcatifa crescer."

Crónicas
A Lobo Antunes

págs. 33 a 35 (1º edição)

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