domingo, fevereiro 22, 2009

O Livro

Quando ele estava no hospital pensei levar-lhe o livro " O diário de Etty Hillesum".
A edição portuguesa acabara de saír e o livro tinha-me acompanhado durante semanas, com sublinhados vários.
É um livro de esperança, apesar do permanente confronto com a morte e com o mal absoluto . Que maior terror pode haver do que uma jovem mulher que sabe que vai acabar assassinada numa câmara de gaz - não apenas ela, mas toda a sua família, incluindo o seu adorado irmão mais novo, um génio da música?
Um dia levei o livro na carteira, tinha ele acabado de fazer a sessão de quimioterapia.
Estava tão pálido e exangue que falámos de coisas absolutamente banais e até um pouco brejeiras. Riu-se e pediu para abrirmos as persianas. Queria ver o sol, a luz a inundar o quarto.
Dei-lhe um beijo na face impecavelmente barbeada e o cheiro ao suor da morte atingiu-me.
Não lhe dei o livro. A intimidade da morte e do sofrimento pertence a cada um, pensei.
Entregar-lhe o livro era admitir que também ele estava prestes a ser enfiado num combóio nauseabundo rumo à imolação inevitável.
Ainda hoje não sei se fiz bem.
Mas não me foi possível fazer melhor.
E , por esta altura, ele já deve saber isso.
"Foi novamente como se a Vida, com todos os seus segredos, estivesse próxima de mim, como se eu a pudesse tocar… E ali sentia-me imensamente segura e protegida. E pensei: «Como isto é estranho. É guerra. Há campos de concentração. Pequenas crueldades amontoam-se por cima de pequenas crueldades. Quando caminho pelas ruas, sei que, em muitas das casas por onde passo, há ali um filho preso, e ali um pai refém, e ali têm de suportar a condenação à morte de um rapaz de dezoito anos.» (...) E num momento inesperado, abandonada a mim própria—encontro-me de repente encostada ao peito nu da Vida e os braços dela são muito macios e envolvem-me, e nem sequer consigo descrever o bater do seu coração: tão fiel como se nunca mais findasse…» em O diário de Etty Hillesum.

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