A "beata" incandescente
Carlos Adaixo
Ainda a manhã mal começou já ela aconchega os joelhos nas tábuas do soalho da igreja. De forma mecânica, como de gravação se tratasse, inicia uma ladainha, uma longa série de curtas invocações que há muito desistiu de perceber e que aprendeu com outras mulheres enquanto criança. Na cabeça, um lenço tapa-lhe os cabelos apanhados e os medos da tentação. Nas mãos um terço entretêm-lhe os dedos nervosos. No rosto, um ar de quem sofre pelos males mundo, de quem reza pela vizinha mal amada, pelo irmão bêbado incorrigível, pelo rapaz que namora todas as miúdas do bairro, pelo próximo que afinal está longe. A "beata" é assim quando em silêncio, entre velas e cheiros de sacristia. O mundo cabe-lhe todo nos gestos , nas preces, nos olhares para as imagens, no ritual obcecado. As promessas cumpre-as comprando velas do seu tamanho mas ignorando o vizinho que passa mal. Cinquenta voltas à igreja como se de maratona espiritual se tratasse ou o mundo ficasse melhor depois da caminhada. A fé tornada gesto automático, prova olímpica, campeonato de devoção. O amor ao próximo transformado numa ideia abstracta, e sendo o próximo alguém distante, melhor. A igreja nestes momentos pertence-lhe, o seu lugar no banco de madeira escura está gasto e é estratégico. Dali nada lhe escapa, tudo fica sobre o seu olhar moralista. O silêncio apenas remexido pelo murmúrio de outras como ela, tementes e por isso crentes. A vergonha, o descaro, a indecência, reprime-as com mais rezas numa boca crispada. O mundo está perdido, desgraçado! Nem com trezentas "salvé rainhas" se salva!
Fora da igreja tudo muda. A "beata" pode adquirir muitas formas. A mais vulgar é a "beata seca", fiel aos princípios da castidade, do puritanismo medieval, segue uma ortodoxia de hábitos e costumes dignas de múmia. É comum vê-la espreitar os vizinhos com ar reprovador, controlando as roupas e os gestos dos jovens lá da zona. O seu gesto favorito é um não repetido com a cabeça. Os olhos semicerrados, os lábios num esgar nervoso, as mãos postas e a invocação constante em vão. Veste de negro, pesa-lhe a vida, anseia outra para além desta. O corpo e as pulsões são uma prisão da sua alma "pura" e cristalina. Virão dias melhores, pensa, nada há fazer por este mundo. Resta-lhe ajoelhar e rezar.
A "beata incandescente" é mais interessante. Segue aquele princípio tão aliciante, "faz como São Tomás, segue o que ele diz não faças o que ele faz". Dentro dos rituais nada a distingue das outras beatas mas é fora do templo que ela se torna um ser paradoxal. Assume a prática diária da religião como uma utopia. Reza na igreja para poder pecar fora dela. Resistiu durante anos ao pecado, depois deixou-se levar. Peca para rezar de seguida. No intimo cede aos prazeres carnais. Ama um homem casado que tem uma mulher entravadinha, coitado! Há momentos assim, o corpo fala mais alto e até é uma obra de misericórdia ajudar quem necessita. Na sua cabeça tudo seria mais fácil se o conceito de pecado, gravado em si há anos, não a impedisse de ser sincera e feliz. A "beata incandescente" luta por se manter socialmente moral, no seu intimo arde-lhe o fogo que ela pensa ninguém ver. A "beata seca" detesta-a . Ocupa-lhe o espaço, rouba-lhe a atenção do sacerdote, é um mau exemplo. Ao domingo, dia de todos os crentes, cruzam-se os olhares em competição. As "beatas" lá estão medindo com o seu olhar os que apenas visitam o templo um hora por semana. Elas rezam sem ouvir o sacerdote. Avaliam os fatos, a pose, os olhares dos outros como se de intermediárias divinas se tratassem. É duro ter de viver e de partilhar um mundo destes. Ouvem-se novas rezas agora mais compulsivas, por eles, pecadores, afastados do ritual e da prática gestual que comprará um lugar no paraíso"
Escreveu o meu "padrinho" Carlos ...
Deve ser este o ambiente nas missinhas privadas....
1 comentário:
E fala ele dee desvios comportamentais!!!!!!!!!!
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