terça-feira, dezembro 30, 2008

Conta-me como foi

Desde pequena gostava de escrever cartas. A primeira, com cinco anos, desenhada afincadamente com uma bic laranja chegara às mãos trémulas da mãe depois de atravessar um continente ( A mãe guardou religiosamente a carta por mais de quarenta anos).

Com o tempo correra a fama da sua capacidade epistolar ( a letra escorreita, desenhada sem pressa, a capacidade em fazer de anseios não ditos frases completas) e eis que as mulheres da aldeia, muitas analfabetas, pediam à menina para ler e escrever cartas. Cartas demasiado pesadas para uma menina carregar - a menina aprendeu com elas a guerra do ultramar, os caminhos da emigração para o brasil, frança e argentina e mesmo os meandros do namoro epistolar.

"Meu querido filho Francisco: espero que esta carta te vá encontrar de boa saúde que eu fico bem graças a deus. Fiz uma promessa à nossa senhora de fátima para que voltes inteirinho e com saúde. Todos os dias penso em ti meu rico filho, a falta que me fazes" .

" Querido António:Espero que ao receberes esta carta estejas de boa saúde na companhia dos teus. É para te informar que a Ermelinda já acabou o enxoval e queria a tua benção para apadrinhar o casamento". Nessa altura a menina achava que aquelas mulheres de preto e muitas rugas eram velhíssimas, mas agora que volta o olhar para trás, repara que as mulheres são afinal tão novas e que só a dor e os partos adolescentes lhes desfiguram as formas.

"Senhor Correia: Depois de informar o mau pai das suas honradas intenções, venho lhe dizer que ele deixa que receba as suas cartas mas que tenho de lhas mostrar e pedir a uma menina para lhas ler , para ver se são honestas ".

As cartas eram relativamente raras e anunciadas em voz tonitruante pelo estafeta lá do sítio que gritava do fundo das escadas: "correio" e fazia vir à porta metade da vizinhança.....

O mais aflitivo de receber eram os telegramas rectangulares com esfíngicas urgências - sempre obrigatoriamente anúncio de mortes, ferimentos em combate ou regressos felizes. As mãos tremiam na delicada tarefa de os rasgar que demorava milénios de rostos empalidecidos e, certo como a luz do sol, depois de um telegrama havia sempre gritos . De luto ou de alegria.

Por tudo isto a epistolar tarefa da menina ia-se agudizando com as marés e quando tinha nove anos tornara-se precocemente perita na arte da escrita, que a biblioteca do avô, cheia de livros proibidos alimentava às escondidas.

Sem comentários: