quinta-feira, fevereiro 28, 2013

Josefa

Josefa mora num pequeno tugúrio cheio de humidade. Por estes dias em que o gelo se instala definitivamente sobre as coisas, Josefa, mirrada nos seus  setenta anos, passa os dias encolhida sobre a lareira. A casa não tem luz eléctrica, que é cara de se pagar   e não há dinheiro para isso. Josefa não tem televisão, a grande companhia dos velhos abandonados, nem cobertor eléctrico nem máquinas de lavar. Lava os trapos à mão com sabão barato no tanque da varanda, as mãos retorcidas  de artrite. Não tem filhos, nem netos.Não tem irmão nem família, Não tem ninguém no mundo, diz-me. Isto de não ter ninguém no mundo soa-me a desterro apocalíptico, um deserto absoluto  de afectos. Josefa foi puta até há relativamente pouco tempo. Mesmo velha, ainda arranjava biscates de tarados ou velhos miseráveis como ela. Agora acabou.
Quando me vem  abrir aporta Josefa está sempre a sorrir. Ri da mais pura e infantil felicidade.
Tem visitas.

quarta-feira, fevereiro 27, 2013

O sal da terra

"Neste momento, há em mim uma grande confiança, porque sei, sabemos todos nós, que a Palavra de verdade do Evangelho é a força da Igreja, a sua vida”

terça-feira, fevereiro 26, 2013

Trata-se do murmúrio, antes de mais

A roseira explodiu mesmo à minha frente, numa curva da estrada. Não era uma roseira qualquer, era uma pequena árvore carregada de rosas de um veludo alucinado àquela hora da manhã.
Por estes dias o ar anda mais fino que nunca. Anavalha os olhos com uma limpidez que só existe no deserto. Está muito frio de madrugada.  E de repente a vermelhidão da cor tremeluziu-me na pele.  Não vi  a curva, não vi a estrada, não vi a ponte. A pele  de pétala,  navalha de ar,  deslize hipnótico.
Só vi a roseira, a epiderme aveludada da cor.
E  foi a sorrir que me precipitei para o abismo.

domingo, fevereiro 24, 2013

è mesmo o ópio do povo

Des chercheurs britanniques qui se sont intéressés aux effets de la pratique religieuse sur la santé mentale, en se basant sur 7 403 personnes impliquées dans une grande étude sur la morbidité psychiatrique en Grande-Bretagne. Les résultats montrent que la fréquence des maladies mentales est similaire chez les croyants pratiquants et chez les athées. Sauf pour ce qui est de la consommation de drogues: ceux qui sont à la fois croyants et pratiquants sont de manière significative moins susceptibles d'avoir consommé de la drogue, régulièrement ou occasionnellement. Et même de l'alcool.

sábado, fevereiro 23, 2013

O fim inevitável do celibato compulsivo.

Haverá actualmente mais casos de pedofilia entre o clero católico do que havia em épocas anteriores? A resposta terá de ser negativa. Abusos sexuais em conventos/mosteiros/colégios católicos e seminários sempre foram recorrentes. Se alguma coisa mudou foi a tolerância social face ao tema.
A igreja sempre se defendeu corporativamente e de certa forma alimentou (pela passividade conivente) estes esquemas sórdidos. Fazia parte da tradição o muro de silêncio, ameaça e vergonha que tornou as vítimas invisíveis e sem voz ao longo de milénios. Apesar de uma ou outra intervenção pontual, mas apenas quando as vítimas eram rapazinhos (não é à toa que a homossexualidade era designada pela inquisição como o pecado dos padres). E quando as vítimas eram mulheres? Silêncio ainda mais absoluto. Mesmo em casos verdadeiramente brutais de freiras violadas por padres e bispos, só muito recentemente houve denúncias. Sobre leigas e meninas vítimas deste abuso, o muro de silêncio é ainda maior.
Se alguma coisa mudou foi precisamente um espírito de abertura que permitiu ás vítimas terem voz...
Onde radica este mal?
Provavelmente da imposição do celibato, que levou a que um grande número de homens com parafilias e transtornos sexuais se refugiassem na "carreira eclesiástica" durante séculos. (Santo Agostinho é um bom exemplo de como uma sexualidade parafílica ou mal resolvida pode originar sublimações místicas e doutrinas mais ou menos desviantes sobre a moral sexual).
Toda a investigação epidemiológica realizada na área da saúde mental tem como ponto comum o seguinte achado: os homens celibatários (versus os homens casados) correm maior risco de perturbações psiquiátricas (e ,já agora de doenças físicas), maior risco de suicídio e maior probabilidade de apresentar disfunções sexuais graves e parafilias. Ou seja, o estatuto de conjugalidade, nos homens, é um elemento estruturante, protector de patologia e disfunções comportamentais graves. Dito isto, uma "profissão", qualquer que seja, que tenha como base de recrutamento homens "forçosamente" celibatários, implica um maior risco de recrutamento de pessoas disfuncionais e perturbadas, mesmo do ponto de vista da sua sexualidade. Repito, é um risco acrescido, não um determinismo absoluto. Quanto á questão do celibato não ser compulsivo mas uma opção pessoal / existencial, pode eventualmente reduzir esse risco.No entanto, a liberdade humana para controlar impulsos biológicos nunca é absoluta e, sendo a sexualidade humana, na sua expressão relacional, uma necessidade humana básica, fundamental, tão importante como comer ou respirar, uma opção existencial que tenha como pressuposto a "castração" permanente de impulsos estruturais para o ser humano, não pode dar grande resultado a longo prazo.
Ou seja, é quase inevitável que saia pela janela o que tentámos fechar com a porta... Eu não culpo o celibato - isso seria simplismo - mas considero que este é um factor de risco estrutural que valeria a pena repensar.

E isto, aliado ao temor reverencial (veja-se,como, ainda hoje, alguns hoje se ajoelham tremulamente ante qualquer esvoaçar de batina), à "facilidade" no acesso às vítimas e à sensação de total impunidade, explica a maior ocorrência destes crimes em clérigos do que na população em geral. Já em 1922 o Papa Pio XI elaborou um documento, "Crimen Sollicitationis", sobre o problema.Tratava-se de normas a seguir nos casos de solicitação de sexo na altura das confissões (..)e de outros delitos mais graves, como o abuso sexual de menores, pois já há mais de 80 anos havia a consciência de que este problema existia. Só que se foi sempre procurando que não transparecesse para fora dos muros da Igreja.
De notar que as regras rígidas dos colégios católicos tradicionais sobre a moral sexual (incluindo as confissões obrigatórias carregadas de devassa erótica sobre a sexualidade dos adolescentes) torna os abusos mais fáceis. E quanto maior a adesão à "tradição" e ao conservadorismo pietista em matéria de sexualidade,  piores os abusos. Veja-se a irlanda.. onde o tradicionalismo doutrinário católico era tão rígido...

Há que mudar o acessório para manter o essencial
 

segunda-feira, fevereiro 18, 2013

O papa desistiu - um divórcio assumido

Quando um papa assume funções, directamente nomeado pelo Espírito Santo, segundo dizem, assume um cargo pesado. Mas não é apenas um cargo, a menos que acreditem que a Igreja  é uma multinacional com um CEO de luxo escolhido entre os membros seniores do conselho de administração.
Se ser papa não é apenas um cargo mas  uma missão, se a investidura papal tem uma sacralidade definitiva, como o matrimónio ou a maternidade/paternidade, então ser papa não é um cargo renunciável. Pela sua natureza é vitalício, independentemente das circunstâncias externas ou dos recursos pessoais dos seus protagonistas.
Eu não posso renunciara a ser mãe. Um pai não pode renunciar a ser pai.

Talvez o papado seja uma espécie de casamento -uma aliança sacramental -  com a Igreja, com a comunidade.
Desistir do papado é uma espécie de  divórcio consciente e assumido. Um papa divorciado é uma inovação extraordinária. neste sentido, talvez  Pedro Arroja tenha razão quando afirma que  Bento XVI foi um papa protestante, no sentido doutrinário do termo.

Pois,  se até o papa se pode divorciar, não venham lançar o anátema sobre os leigos  que fazem  o mesmo e pelas mesmas razões: estão cansados, não aguentam mais.


domingo, fevereiro 17, 2013

CHUVA 3 Rose Clair Brasil - Dona Doida: Adélia Prado

Da chuva 2



Noite dentro, enquanto a chuva mansa tamborila nas vidraças, Judite rebola na cama, resfolegando como se fosse um animal. Uma égua ou uma vaca. De lábios túmidos. Cabelos emaranhados. A pele recamada de bagas de suor. Parece uma planta orvalhada. Uma deusa ignota, imperfeita. Espera Judite que a escuridão do quarto tome a forma do corpo de um homem.

Pensa Judite: quando a escuridão e o vazio se condensarem em corpo de homem, por fim, amainarei. A chuva continuará, mansa, a bater nas vidraças. Com calma, olharei para os ciprestes que lá fora permanecerão hirtos. Olharei para o homem deitado ao meu lado. Será grande como sempre o imaginei. Cabelo comprido. Barba negra como a escuridão que lhe deu corpo. Olhos de lobo, de lince, de leão, de cão esfaimado. Um bafo quente, nebuloso, sair-lhe-á de dentro. Será como um animal feroz sem açaime ou jaula.

  Da Anna

Da chuva 1

Toda a noite, e pelas horas fora, o chiar da chuva baixou. Toda a noite, comigo entredesperto, a monotonia liquida me insistiu nos vidros. Ora um rasgo de vento, em ar mais alto, açoitava, e a água ondeava de som e passava mãos rápidas pela vidraça; ora com som surdo só fazia sono no exterior morto. A minha alma era a mesma de sempre, entre lençóis como entre gente, dolorosamente consciente do mundo. Tardava o dia como a felicidade - áquela hora parecia que também indefinidamente. 

Fernando Pessoa, Livro do desassossego

Grande desejo

Não sou matrona,
mãe dos Gracos, Cornélia,
sou mulher do povo, mãe de filhos, Adélia.
 Faço comida e como.
Aos domingos bato o osso no prato
pra chamar cachorro e atiro os restos.
 Quando dói, grito ai.
 quando é bom, fico bruta,
as sensibilidades sem governo.
Mas tenho meus prantos,
claridades atrás do meu estômago humilde
 e fortíssima voz pra cânticos de festa.
Quando escrever o livro com o meu nome
 e o nome que eu vou pôr nele,
vou com ele a uma igreja, a uma lápide, a um descampado,
 para chorar, chorar, e chorar,
 requintada e esquisita como uma dama.

Adélia Prado

Sentido

"O ‘mistério não é irracional mas superabundância de sentido e de significado’ 

(Bento XVI).

Antes do nome


Não me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,
os sítios escuros onde nasce o "de", o "aliás",
o "o", o "porém" e o "que", esta incompreensível
muleta que me apóia.
Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infreqüentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror.

Adélia Prado (2003, p6 Lisboa:Edições Cotovia)

O livro de hoje

Comprei um livro de Adélia Prado na Bertrand. Fiquei tão feliz que me apeteceu partilhá-lo com toda a gente. Já li alguns textos esparsos  da Adélia e poemas rebuscados aqui e ali online. Desta vez com um livro dela inteirinho para ler, sentei-me no sofá da sala e não saio daqui nem que acabe a madrugada. O meu corpo pede-me para fazer assim e deixo-me ir. Ao contrário do que alguns pensam, a poesia nada tem de esboço intelectual. É uma pura necessidade biológica.

Abro e leio.Leio e não resisto a escrever.


sexta-feira, fevereiro 15, 2013

Em cada esquina um fiscal, em cada rosto maldade

Nos tempos do Estado Novo, ir a um café não era assim tão divertido. As habituais tertúlias à volta da bica ou do fino tinham de ser feitas em voz baixa. Ninguém ria alto em sítios públicos. Era de mau tom se os casais  dessem as mãos, mesmo que fosse no intervalo de almoço, e beijos públicos nem pensar. Havia sempre um pequeno PIDE a lembrar aos incautos que isso é uma violação da lei e dos bons costumes. E,  no meio deste colete de forças social,  havia a omnipresença do medo. Há vários tipos de medo, mas há aquele medo rasteiro, comezinho, cinzentóide - o medo da pequena denúncia, da delação dos bufos de café, o medo de olhar em volta  p`ra ver quem está, o medo de falar em voz baixa, o "cala-te boca", o "respeitinho é muito lindo".
Nós não temos memórias desses tempos, que condicionaram mais que uma geração. 
Mas a ideia de um fiscal em cada esquina a observar-me enquanto  tomo café para ver  se  peço factura sob ameaça de multa  é de tal maneira aviltante que ultrapassa quelquer imaginário orweliano. Eu que pago os meus impostos religiosamente, que nunca fugi ao fisco nem com um cêntimo, que nunca cometi qualquer fraude fiscal ou bancária que lesasse o património público,  tenho de ter agora um  Estado patrulheiro do meu comportamento de consumidor. Tudo  fica numa base de dados - quantos cafés bebi num ano fiscal , quantas vezes fui ao cinema, que livros comprei, onde jantei,  que roupa comprei. Algures, um fiscal gordalhufo qualquer vai olhar para a minha folha de consumidor, em formato de ficha electrónica pidesca e vai saber absolutamente tudo sobre grande parte da minha vida pessoal, até aos detalhes mais íntimos do custo da minha roupa interior. Sem que isso se traduza em qualquer benefício pessoal ou comunitário a não ser num gigantesco voyeurismo colectivo em nome da denúncia electrónica.
E isto é de tal maneira perverso, indigno e atentatório aos direitos mais básicos de liberdade e reserva da vida privada que duvido que seja constitucional.

Deus é brasileiro

Christoph Schönborn, o cardeal arcebispo de Viena, pupilo de Bento XVI, decidiu fazer um gesto simpático aos brasileiros: colocar uma imagem de Nossa Senhora Aparecida numa igreja de Viena.

quarta-feira, fevereiro 13, 2013

Recados de um arquivista desarrumado

O poder da palavra deixou de ser radical. As  hecatombes sísmicas de vozes que movem montanhas transformam-se em sussurros lentos que só os cegos sabem.
As sílabas  desgastaram-se até ao tutano, reduzidas a pouco mais que coisas. Sem densidade, as palavras desaparecem aos bocados. Agora só escrevemos  imagens, sinais visuais,  articulações vagas  estímulos quanto mais intensos e rápidos melhor, fluxos sensoriais sem pensamento.
A imagem e a imagem só. Vamos  cegando  para as palavras  e isso é uma grande e definitiva tristeza.

A mudança urgente já começou

Desde o papa João Paulo II que a Igreja católica ficou refém da caricatura em matéria doutrinária.
 A questão da contracepção eficaz ( já que a Igreja católica admite a contracepção, desde que seja pouco eficaz, como são o métodos contraceptivos ditos "naturais")  desembocou na caricatura da "proibição do preservativo". E nem o sério problema da SIDA e da necessidade de prevenção desta e doutras DSTs, alterou um discurso caquètico e desligado da realidade.
Curiosamente Ratzinger deu um passo quase revolucionário, ao admitir a eficácia das política de prevenção da SIDA da OMS, o programa ABC, com tanto êxito em algumas regiões de Àfrica Uganda, em que se associou o ensino para a saúde e a distribuição em massa  de preservativos gratuitos .
  Foi a primeira vez que um papa reconheceu a eficácia de tal programa, dizendo, ao mesmo tempo, o que todas as organizações de combate à sida dizem: mudanças comportamentais e sexo seguro são a chave para resolver o problema do contágio. Uma vertente sem a outra são ineficazes.
Claro que o disse em vaticanês erudito e racional, linguagem que os fundamentalistas católicos não percebem bem.Claro que não teve a coragem evangélica de o proclamar com clareza. Um papa refém da cúria.
Mas Bento XVI não ficou por aqui. Numa entrevista  devidamente pensada e estruturada, admitiu  a utilização  do preservativo para evitar o contágio. E, ao fazê-lo derrubou dois mitos da propaganda beata e ignorante sobre o tema, admitindo que:
1)Os preservativos são a única protecção ( e protecção altamente eficaz) de prevenir a transmissão da SIDA durante uma relação sexual;
2) Por isso mesmo pode haver casos individuais em que a sua utilização  seja justificada  como, por exemplo, quanto um prostituto usa um preservativo, como afirmou expressamente numa entrevista pública de grande impacto. E embora o papa não o tenha dito em público, se há justificação moral para esse caso, maior justificação moral haverá no caso de um cônjuge infectado querer proteger o outro.Nestes casos o uso de preservativo não está apenas justificado  - é mesmo um imperativo moral.
A seu modo, discreto mas claro no discurso, Bento XVI realizou uma pequena ruptura epistemológica, sempre na continuidade da doutrina de respeito pela vida.
Pois é da de defesa da vida que se trata, quando os preservativos evitam a doença e a morte de pessoas.

Modernices

"Confesso que não sei onde tanta modernice nos vai levar. Falam agora da possibilidade de o sucessor de Bento XVI ser um cardeal negro. Se isto continuar assim, um dia, Deus me perdoe, ainda teremos uma mulher a ocupar o lugar de Pedro."

No delito de opinião

A cor do dia

Em vez de dizer "está frio", "está calor", está vento, "vai chover", Patrícia classifica os dias e os acidentes meteorológicos com linguagem pictórica.
"Está azul", diz ela quando a solarenga manhã se lhe desprende dos ombros e cai em pregas vestido abaixo.
"Está roxo", diz-me ao saír de casa, quando o ar gélido torna as unhas violetas. Calço-lhe as luvas.
"Está amarelo" , dias de riso e praia, de escaldões na areia, gelados a derreter, movimentos de roda de crianças.
Hoje foi um dia típico castanho. Sem luz nem sombras, com mais cinzas que verdes.
"Está castanho", disse-me ela enquanto abria  o guarda-chuva no passeio. 
Olhei à volta. 
Tinha razão.

E assim, neste arco-íris de  assombros, habituei-me às cores todas que os dias podem ter.


Hoje


A fria claridade ( ensaio sobre a ignorância )

« Entrei numa livraria , pus-me a contar os livros que há para lêr e os anos que terei de vida . Não chegam . Não duro nem para metade da livraria . Deve haver certamente outras maneiras de se salvar uma pessoa . Senão , estou perdido . »

( Almada Negreiros)

terça-feira, fevereiro 12, 2013

Vaticano 2035 - A Profecia

Entre 2013 e 2023, a civilização enfrenta a sua Década Negra: um novo virus  Snov mata milhões de seres humanos; o obscurantismo religioso reaviva os medos ancestrais; ao movimento de Reconquista católico opõe-se o movimento deicida; a Guerra Santa estala na Índia; à Grande Crise de Jerusalém suceder-se-á uma frágil concórdia entre os homens. Por outro lado, a política do Vaticano sofre igualmente convulsões graves: Bento XVI resigna, algo nunca visto nos últimos seiscentos  anos.

Segue-se um tenebroso ciclo com a ascensão ao papado d,  Pio XIII  que extingue a Companhia de Jesus, que se organiza em bolsas de resistência na América do Sul. Os Templários de Cristo conquistam o poder no seio da Igreja. O futuro Papa Tomé I entra na clandestinidade e dá início ao seu famoso blog…


A ficção.

O melhor comentário

Aqui,

segunda-feira, fevereiro 11, 2013

O melhor candidato

Cardinal Christoph Schönborn

Cardinal Christoph Schönborn

Country: Austria
Position: Archbishop of Vienna
Age: 67

A renovação perene

Como era expectável, o papado de Bento XVI foi curto. Já todos o sabíamos.
Legou-nos duas encíclicas que são tudo menos conservadoras e uma lucidez intelectual rara. Um papado de transição, em que tentou acolher ovelhas perdidas e mudar os fundamentalistas católicos, sem muito êxito, refira-se.
Até ao fim , o que fica deste papado:
  • A  afirmação definitiva do Concílio Vaticano II, do ecumenismo e diálogo inter-religioso,
  • A  abertura a igreja aos ateus e à ciência 
  • A  busca da racionalidade em vez do pietismo emotivo e serôdio.
O certo é que este papa  pretensamente conservador, conseguiu abrir portas e impor novidades na caquética  linguagem cifrada do Vaticano, defendeu princípios ecológicos, falou contra o capitalismo selvagem e o sistema bancário predatório, foi um arauto da paz e dos direitos humanos.
O próximo papa será brasileiro, progressista e aberto ao novo milénio!

Proibido a menores de idade

Por motivos óbvios, as Jornadas Mundiais de Juventude, esse megalómano festival de verão, mais ou menos beateiro, não é recomendável a menores de idade.É a Conferência Episcopal Alemã quem o diz e espera-se que as suas congéneres lhe sigam o exemplo.
E não é por acaso. Um grande Carnaval beateiro, com muita alegria e práticas sexuais de risco, já que os jovens católicos são incentivados a NÃO usar preservativo. 

quarta-feira, fevereiro 06, 2013

A cor do dia

O mundo, esse imenso oceano de ânsias, orgias e beatitudes. A explosão da cor.





E no entanto, move-se

 A política tem a responsabilidade de encontrar "soluções de direito privado" e de encontrar "perspectivas patrimoniais" para casais que optem pela união fora do casamento tradicional, que são cada vez mais numerosos e assumem formas diversas, afirmou, citado pela agência francesa AFP, Vincento Paglia, o responsável pelo ministério da Família do Vaticano.

terça-feira, fevereiro 05, 2013

Cardeal apoia pílula do dia seguinte


Os fundamentalistas da sharia católica  recusam a contracepção de  emergencia  a mulheres vítimas de violação. .Dois hospitais católicos de Colónia recusaram-se a administrar a pílula do dias seguinte a vítimas de violação,
Isso é tão escandaloso que o cardeal Joachim Meisner,  arcebispo de Colônia e um íntimo amigo do papa, veio  a público defender a utilização  pílula do dia seguinte nestas situações. Segundo o Arcebispo, trata-se , justamente, de impedir uma fertilização e uma gravidez não desejada e não de aborto.

Mas o cardeal não se limitou a dizer que a pílula do dia seguinte é aceitável e não colide com  a doutrina católica sobre o aborto.
Pediu publicamente perdão à vítimas de violação a quem foi recusada contracepção por hospitais católicos. E disse sentir-se envergonhado pelo incidente.

Finalmente.

segunda-feira, fevereiro 04, 2013

As aventuras e desventuras de Chico Agulha - 4

Passei quatro noites sem dormir no alpendre da casa, agarrado ao machado, à conta de litradas de café. A Miquelina pensou que eu tinha endoidado de vez, mas bem lá no fundo andava orgulhosa da minha súbita macheza,  na defesa do sacrossanto reduto conjugal. Voltei a ser amaridado como nunca, morcela da beira  ao jantar, pudim de ovos durante a semana, e até papas de sarrabulho me trouxe um dia para merendar. Isto e outras íntimas alegrias nos intervalos da sesta, que eu agora tinha que dormir a sesta, cansadinho das vigílias nocturnas. Nestas andanças, parecia quase recém-casadoE tudo com o beneplácito do meu sogro Fagundes, que pelo sim pelo não, fazia rondas à vivenda armado de caçadeira.
Miquelina não tardou a espalhar as boas novas da minha valentia pela vila e arredores, à Marlene da farmácia, às colegas da fábrica, aos companheiros de comboio, à  Liliane Marise, cabeleireira. As notícias correm mais depressa que rastilho de pólvora - Chico Agulha desistiu da empreitada. Não por causa de mim ou do meu machado alpendurado às portas da vivenda, mas por causa do meu sogro.
Maus fígados  e gatilho fácil.



Personagens

A sociedade que cerca esses personagens — o formalismo oficial (Acácio), a beatice parva de temperamento irritante (D. Felicidade), a literaturarinha acéfala (Ernestinho), o descontentamento azedo e o tédio da profissão (Juliana), e às vezes, quando calha, um pobre bom rapaz (Sebastião). Um grupo social, em Lisboa, compõe-se com pequenas modificações, destes elementos dominantes. Eu conheço uns vinte grupos assim formados. Uma sociedade sobre estas falsas bases não está na verdade: atacá-las é um dever  (...)  Merecem partilhar com o Padre Amaro da bengalada do homem de bem.

Eça de Queirós in Correspondência. Porto: Lello & Irmão Editores, 1946: 43

A minha prima Vanessa

 Esta semana, a minha prima Vanessa pôs uma fotografia no Facebook com uma cara completamente nova. Não a via há mais de dez anos, desde que emigrou à pala do amante, para se dedicar a trabalhos não especificados na área da hotelaria. No princípio não a reconheci, nariz esguio e perfeito, lábios insuflados, silicone, rosto alisado de boneca, testa de ninfeta, sem qualquer imperfeição e a inevitável cabeleira  de quarentona. Loira.
Fiquei pasmado, a olhar a foto do perfil, uma e outra vez. Os olhos esbugalhados de botox têm  a mesma cor de amêndoa clara da nossa meninice. Tudo o resto está fabricado, retocado, a beleza fulgurante que ela tinha está reduzida a um outro tipo de beleza. A beleza das modelos de revista, das meninas da TV, das quarentonas mais ou menos esticadas. Não sei porquê  mas  a beleza da minha prima Vanessa deixou-me o coração triste. E só por isso respondi que sim ao seu pedido no facebook. Não parece, mas sou um rapaz romântico. Xaroposo, quase.

sábado, fevereiro 02, 2013

As aventuras e desventuras de Chico Agulha - 3 parte

Apanhei o comboio, rodeado da clareira habitual. Pelo caminho, entre árvores caídas, contornos de rio, restos de campos abandonados, paisagens de aldeolas, fui pensando num plano. Falar com a Miquelina estava fora de questão, avisar a polícia nem pensar. Tinha que pedir ajuda ao velho.O meu sogro Fagundes era um homem tosco,  desses de honradez antiga, sacho numa mão, caçadeira na outra. À sua moda  continuava a zelar pela filha, a guardar-lhe a casa e o quintal quando íamos de férias para Pedrogão, e a vigiar-me a mim, o animal, sem me deixar pôr o pé em ramo verde. Miquelina, já se sabe, acolitava o pai em tudo o que fosse apoquentar-me.
Hora e meia depois desci na estação, mirrado de maus agoiros. A cara do Tó Sida, todo ele chupado, maus dentes,  olhinhos amarelados de rapina,  a falar-me dos LPs, dos cristais atalantis, do busto de cobre,  da televisão. Não era a minha casa, era  um cardápio de saque.
Rodei nos calcanhares e fui falar com o Fagundes. Contei-lhe quase tudo, na minha aflição. Os seus olhos azulados, dum azul sujo, brilhavam de indignação. Sem uma palavra, foi lá dentro e apareceu nas escadas com a caçadeira carregada. Toma, leva p´ra casa.Já sabes o que acontece se alguém faz mal à minha filha. Titubeei, engoli em seco, humilhado como um cão. Odeio armas, nunca disparei nenhuma, um bacamarte daqueles de nada me serviria. O Fagundes  maldisse a minha cobardia de rapazola frágil que nem  à tropa foi, um artista, já se sabe no que dá, voltou  lá dentro e trouxe um machado, desses de partir lenha e deitar árvores abaixo. Tomei-lhe o peso. Se eu não sabia usar uma caçadeira, podia sempre desferir umas machadadas. Sosseguei o velho, rachar lenha sabia eu,  e se visse alguém agarrado aos meus discos de música electrónica era bem capaz de lhe arrancar um braço. Voltei a casa, impante, com um machado aos ombros, quase do meu tamanho. A meio do caminho,  desabou  uma grossa chuva oblíqua, vergastada de vento, que me deixou estonteado, agarrado ao casaco, enrodilhado na borrasca. Sentei-me à porta de casa com o resto da chuva a escorrer-me na cara, ainda  atordoado, queixo poisado no cabo do machado,  inabalável. 
O Chico Agulha que viesse.

sexta-feira, fevereiro 01, 2013

Aventuras e descenturas de Chico Agulha 2

A minha vida começou a andar para trás. Já não me bastavam as desconfianças de Miquelina, enfurecida pelos dichotes da vizinhança e pelos cacos do galgo de porcelana. Deixou-me à míngua por quase duas semanas, nada de pitéus nem  moelinhas ou outras lambuzices. 
Com muita lábia, músicas do Tony Carreira, um perfume sugerido pela Mónica da reprografia, lá acabei por a convencer que não era nenhum dealer, que ideia parva, eu, que, juro pelas alminhas, nunca toquei em droga e me enjoo com cigarros...
Andava Miquelina já amolecida, a olhar p'ra mim suspirosa, apiedada do meu ar de cão batido, quando o Tó Sida me foi procurar à saída do emprego. Vinha encolhido como sempre, casaco de coiro preto a tapar os braços mais esburacados que honra de político.  Man, sou teu amigo, tenho que  te avisar.. ..
E foi assim que fiquei a saber que Chico Agulha, curado da ressaca e revigorado do tratamento de desintoxicação, andava outra vez nas ruas. E que tivera um assomo assombroso de memória. Falava, ao pormenor,  do interior da minha vivenda, as taças de cristal atlantis da sala, a colecção rara de LPs de música sinfónica, o busto de bronze na entrada, o televisor novinho em folha  usado para ver o jogo de futebol. E o  desgraçado fazia planos com os amigos, apreçava objectos, propunha trocas.
 Era garantido, não tarda nada ia assaltar-me a casa.

Isto não é coincidência.

Há um Adolfo neste governo.

Do amor

"Se a grande preocupação do nosso tempo fosse o amor — ainda admitiríamos que se arquivasse, por meio das artes da imprensa, cada suspiro de cada Francesca. Mas o amor é um sentimento extremamente raro entre as raças velhas e enfraquecidas. Os Romeus, as Julietas (para citar só este casal clássico) já não se repetem nem são quase possíveis nas nossas democracias, saturadas de cultura, torturadas pela ânsia do bem-estar, cépticas, portanto egoístas, e movidas pelo vapor e pela electricidade. Mesmo nos crimes de amor, em que parece reviver, com a sua força primitiva e dominante, a paixão das raças novas, se descobrem logo factores lamentavelmente alheios ao amor, sendo os dois principais aqueles que mais caracterizam o nosso tempo: o interesse e a vaidade. Nestas condições, o amor que voltou a ser, como na Grécia, um Cupido pequenino e brincalhão, que esvoaça, surripiando aqui e além um prazer fugitivo — é removido para entre os cuidados subalternos do homem, muito para baixo do dinheiro, muito para baixo da política... É uma ocupação, sem malícia o digo, que se deixa para quando acabar o dia verdadeiro e útil, e com ele os negócios, as ideias, os interesses que prendem. «Já não há hoje nada de produtivo a fazer? Já não há nada de sério em que pensar?... Bem! Então, um pouco de perfume nas mãos, e abra-se a porta ao amor que espera!» A isto está reduzida a Vénus fatal e vencedora! "


Eça de Queirós, in 'A Correspondência de Fradique Mendes