Apanhei o comboio, rodeado da clareira habitual. Pelo caminho, entre árvores caídas, contornos de rio, restos de campos abandonados, paisagens de aldeolas, fui pensando num plano. Falar com a Miquelina estava fora de questão, avisar a polícia nem pensar. Tinha que pedir ajuda ao velho.O meu sogro Fagundes era um homem tosco, desses de honradez antiga, sacho numa mão, caçadeira na outra. À sua moda continuava a zelar pela filha, a guardar-lhe a casa e o quintal quando íamos de férias para Pedrogão, e a vigiar-me a mim, o animal, sem me deixar pôr o pé em ramo verde. Miquelina, já se sabe, acolitava o pai em tudo o que fosse apoquentar-me.
Hora e meia depois desci na estação, mirrado de maus agoiros. A cara do Tó Sida, todo ele chupado, maus dentes, olhinhos amarelados de rapina, a falar-me dos LPs, dos cristais atalantis, do busto de cobre, da televisão. Não era a minha casa, era um cardápio de saque.
Rodei nos calcanhares e fui falar com o Fagundes. Contei-lhe quase tudo, na minha aflição. Os seus olhos azulados, dum azul sujo, brilhavam de indignação. Sem uma palavra, foi lá dentro e apareceu nas escadas com a caçadeira carregada. Toma, leva p´ra casa.Já sabes o que acontece se alguém faz mal à minha filha. Titubeei, engoli em seco, humilhado como um cão. Odeio armas, nunca disparei nenhuma, um bacamarte daqueles de nada me serviria. O Fagundes maldisse a minha cobardia de rapazola frágil que nem à tropa foi, um artista, já se sabe no que dá, voltou lá dentro e trouxe um machado, desses de partir lenha e deitar árvores abaixo. Tomei-lhe o peso. Se eu não sabia usar uma caçadeira, podia sempre desferir umas machadadas. Sosseguei o velho, rachar lenha sabia eu, e se visse alguém agarrado aos meus discos de música electrónica era bem capaz de lhe arrancar um braço. Voltei a casa, impante, com um machado aos ombros, quase do meu tamanho. A meio do caminho, desabou uma grossa chuva oblíqua, vergastada de vento, que me deixou estonteado, agarrado ao casaco, enrodilhado na borrasca. Sentei-me à porta de casa com o resto da chuva a escorrer-me na cara, ainda atordoado, queixo poisado no cabo do machado, inabalável.
O Chico Agulha que viesse.
O Chico Agulha que viesse.
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