Nos tempos do Estado Novo, ir a um café não era assim tão divertido. As habituais tertúlias à volta da bica ou do fino tinham de ser feitas em voz baixa. Ninguém ria alto em sítios públicos. Era de mau tom se os casais dessem as mãos, mesmo que fosse no intervalo de almoço, e beijos públicos nem pensar. Havia sempre um pequeno PIDE a lembrar aos incautos que isso é uma violação da lei e dos bons costumes. E, no meio deste colete de forças social, havia a omnipresença do medo. Há vários tipos de medo, mas há aquele medo rasteiro, comezinho, cinzentóide - o medo da pequena denúncia, da delação dos bufos de café, o medo de olhar em volta p`ra ver quem está, o medo de falar em voz baixa, o "cala-te boca", o "respeitinho é muito lindo".
Nós não temos memórias desses tempos, que condicionaram mais que uma geração.
Mas a ideia de um fiscal em cada esquina a observar-me enquanto tomo café para ver se peço factura sob ameaça de multa é de tal maneira aviltante que ultrapassa quelquer imaginário orweliano. Eu que pago os meus impostos religiosamente, que nunca fugi ao fisco nem com um cêntimo, que nunca cometi qualquer fraude fiscal ou bancária que lesasse o património público, tenho de ter agora um Estado patrulheiro do meu comportamento de consumidor. Tudo fica numa base de dados - quantos cafés bebi num ano fiscal , quantas vezes fui ao cinema, que livros comprei, onde jantei, que roupa comprei. Algures, um fiscal gordalhufo qualquer vai olhar para a minha folha de consumidor, em formato de ficha electrónica pidesca e vai saber absolutamente tudo sobre grande parte da minha vida pessoal, até aos detalhes mais íntimos do custo da minha roupa interior. Sem que isso se traduza em qualquer benefício pessoal ou comunitário a não ser num gigantesco voyeurismo colectivo em nome da denúncia electrónica.
E isto é de tal maneira perverso, indigno e atentatório aos direitos mais básicos de liberdade e reserva da vida privada que duvido que seja constitucional.
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