Quando conheci Dona Imperatriz já ela era velhíssima, centenária quase. Da loirice menineira pouco sobrara, e à medida que envelhecera, os traços de mulata albina tinham-se acentuado, os lábios grossos, as ancas monumentais. Falava grosso e forte. Até ao fim a sua voz ressoava na casa herdada de seu marido, sonho impossível de seu pai José: átrios de azulejo, escadarias de madeira, tetos de fino estuque, lustres de cristal, ameias de castelo, uma fonte de ninfas nuas na entrada, duas palmeiras monumentais que ela própria plantara.
Nos últimos anos da sua vida
Imperatriz entrevara, acometida de súbito mal que a deixou paralisada. Mesmo
assim governava a casa de cima a baixo, de manhã as criadas e o rancho de netas vinha tirá-la da cama, vesti-la lava-la e perfumá-la como na corte. Punham-na
então no cadeirão da sala ou da cozinha, conforme o tempo ou as precisões, no
meio de almofadas, rendilhadas mantas, botinhas de lã p'ara não esfriar os pés. E
assim, mais aperaltada, mais perfumada e mais mimada que qualquer Imperatriz, passava
o dia a conversar e a mandaricar. Arranjou uns óculos para poder ler e
lia tudo e de tudo, o mais que podia, sobretudo à tarde, enquanto a luz
era boa. Contou-me que aprendeu a ler e a escrever aos trinta e cinco anos, quando
enviuvou e se cansou de ser roubada à descarada por feitores, rendeiros e
negociantes de gado. Contas ela sabia, mas botar coisa no papel, ler entrelinhas
e contratos, escrever cartas, isso sempre tivera que pedir a outros. Não fez
por menos – contratou o professor da escola primária lá da aldeia que lha dava
aulas durante a semana, no salão grande, de porta aberta, p´ra evitar mexericos
coscuvilheiros. Consta que Imperatriz, ela própria, terá ensinado ao professor novos
fonemas e simplificações caligráficas, mas isso são as más-línguas. Assim que
se apanhou letrada, em mais que uma arte, despediu o professor, deu uso
completo à biblioteca empoeirada do marido, passou a mandar vir jornais da
cidade, assinava revistas. Comprou cadernos e cadernos de linhas horizontais onde
treinava afananosa escrita. Arranjou uma belíssima assinatura personalizada, em
que o i maiúsculo inicial de Imperatriz revoluteava com um caracol por cima. E
desatou a escrever cartas a toda a gente por motivos fúteis, postais de
aniversários, felicitações de casamentos e baptizados, pêsames dos mortos. Não
tinha mais ninguém a quem escrever.
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