Durante algum tempo, a partir das seis da manhã tinha uma tarefa.
Acordar o monstro, que amanhecia em urina e suor, despir-lhe as roupas coladas ao corpo. Empurrá-la suavemente para a casa de banho. Dar-lhe banho numa banheira antiga, água quente temperada com cuidado, o chuveiro há muito estragado, só a mangueira a rodopiar quando a pressão era muita, o monstro ora zangado ora contente, dependia do sono e da temperatura da água, sem uma palavra,sem um olhar, que o monstro autista não sabia falar nem tinha olhos de gente. Urinava, bebia e comia como eu, mas pouco mais, dormia dez horas seguidas sem se mexer na cama. Tirando isso, nem uma gargalhada aprendera, andava em passinhos curtos de criança e ás vezes parava no meio da passada, de súbito emperrada por uma força qualquer, ou uma voz na cabeça que só ela ouvia, ou um grunhido.
Algumas manhãs, antes do banho, enquanto eu a despia, o monstro tapava a cara com as mãos e gritava sem razão, gritos agudos, guturais, de alguém aflito. E eu tinha de congelar os gestos apressado dos meus vinte anos, suspirar, dizer palavras de sossego, por momentos, eu sózinha na casa de banho com o monstro, sem mais ninguém para ajudar, suspendia os braços e olhava, olhava pela janela, plátanos e madrugadas e daí a duas horas eu iria saír dali para o ar livre, mas entretanto, por uns minutos parava de a despir, o pijama mijado a meio da perna, o camisolão enrolado na cintura, umbigo violáceo à mostra.
O monstro era imensamente feia, de uma animalidade óbvia que ninguém quereria tocar, cabelo rapado de prisioneira antiga, olhos glaucos, abdómen distendido e pernas finas como uma figura de Bosch em carne viva. O couro cabeludo com tinha, hirsutismo na face. Os dedos fininhos tinham unhas que era preciso cortar todos os dias para que ela não se ferisse ou mutilasse até sangrar. Quando saía da banheira, cheirosa de champô e gel de banho, embrulhava-a na toalha do hospício e dava-lhe um abraço. Durante uns minutos a monstro ficava sereno nos meus braços, muito mais alta e imensamente mais gorda que eu, como um bebé amansado.
O monstro era imensamente feia, de uma animalidade óbvia que ninguém quereria tocar, cabelo rapado de prisioneira antiga, olhos glaucos, abdómen distendido e pernas finas como uma figura de Bosch em carne viva. O couro cabeludo com tinha, hirsutismo na face. Os dedos fininhos tinham unhas que era preciso cortar todos os dias para que ela não se ferisse ou mutilasse até sangrar. Quando saía da banheira, cheirosa de champô e gel de banho, embrulhava-a na toalha do hospício e dava-lhe um abraço. Durante uns minutos a monstro ficava sereno nos meus braços, muito mais alta e imensamente mais gorda que eu, como um bebé amansado.
Desse tempo em que eu lavava monstros aprendi o essencial.
Todos os seres humanos merecem cuidado, mesmo aqueles que parecem monstros aos olhos destreinados dos indiferentes.
Todos os seres humanos merecem cuidado, mesmo aqueles que parecem monstros aos olhos destreinados dos indiferentes.
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