quinta-feira, janeiro 31, 2013

Aventuras e desventuras de Chico Agulha 1

No dia em que convidei o  Chico Agulha para ir ver o Porto-Benfica lá a casa devia ter levado com qualquer coisa na cabeça. Em boa verdade, nem foi eu que o convidei, foi ele que se fez convidado, estávamos nós a combinar umas minis e uns tremoços pra depois da hora de serviço, quando ele, com aquele ar  pegajoso de  pendura disse - eh cambada, tá combinado!
  E pronto.  Às cinco horas lá estava ele a tocar a campainha da vivenda, com uma grade de cerveja às costas e  um grande sorriso desdentado. Não  sei se foi por causa das minis,  se por pena da falta de dentes, não tive coragem de o enxotar. E foi assim que Chico Agulha entrou na minha casa, passou pelo galgo de loiça do hall de entrada e se estatelou no sofá de pele, entre baforadas, copos sujos e cascas de tremoço, enquanto a malta gargalhava insultos ao árbitro... 
À meia-noite,  já o jogo findara e os homens começavam a  modorrar a excitação do festejo, satisfeitos da minha Miquelina ter deixado o frigorífico abastecido de moelinhas, pica-paus e outros pitéus condimentados.  Chico Agulha, companheiraço da farra, ganhara a simpatia à conta das vinte e quatro minis a saír do congelador para a goela da maralha. Foi então que a coisa começou a descambar. Chico Agulha começou a tremer, voz a empastelar, cólicas de barriga. À medida que a euforia dos outros amornava, crescia a sua agitação.  A certa altura perdeu a cabeça. Tremia, suava em bica - ajudem-me, ajudem-me que não tenho produto e estou a ressacar. 
Ah, meu cabrão bem me tinham dito que te chamavam agulha porque metes p'rá veia queres ver que o gajo se apaga aqui no sofá? Ai se a minha Miquelina sabe que um cadáver lhe sujou a sala, granda filha da puta, livra-te de me morreres aqui... por essa altura já o Chico espumava p'la boca e revirava os olhos e foi num ai que o agarrámos em ombros e o carregámos porta fora até à rua. No meio da confusão esbracejou um convulsivo braço e deitou ao chão o cão de louça do hall de entrada, para meu desespero. Levem-no p'ra Coimbra, levem-no p'ra coimbra que  se a minha Miquelina sabe que meti um drogado cá em casa mata-me,  mata-me.
Lá o enfiámos no porta-bagagens do opel corsa e vi-os arrancar  a duzentos à hora para o hospital. Aparvalhado e com azia lá voltei a casa limpar a lixeira da sala, esvaziar cinzeiros e recolher os cacos de galgo de loiça que Miquelina regressava de manhã da casa da mãezinha e ia sobrar p'ra mim.
De manhã cedo toca a vestir fatiota, abocanhar qualquer coisa e apanhar o comboio p'rá cidade. Foi ao chegar à estação que topei qualquer coisa. Os habituais companheiros de viagem, gente da vila que apanhava o comboio à mesma hora de todos o dias,  olhavam-me com ar transido, como quem vê um fantasma. Ou um assaltante. Ou um gajo com doença má.  Cochichavam sustos, sussurravam-me nas costas e dois  cumprimentos de bons-dias ficaram sem resposta. Até que o Zé Carlos comentou: Então, ganda farra lá em casa ontem hã?  E foi assim que fiquei a saber que Chico Agulha tinha ido parar ao Centro de saúde  lá da vila, com atendimento nocturno, em vez de recambiado p´ra coimbra. Os filhos da puta dos meus amigos tiveram medo que o gajo  morresse pelo caminho e lá o deixaram a espumar ressaca, uma receita suja de metadona no bolso, dobrada em quatro.
E foi  assim que me tornei no dealer mais perigoso da minha terra e arredores. Mais manhoso que Alpacino em dias maus, a  deixar morrer drogados, à míngua de dose.
Nesse dia sentei-me sozinho num canto da carruagem com uma súbita clareira de lugares à minha volta.

No tempo em que eu lavava monstros

Durante algum tempo, a partir das seis da manhã tinha uma tarefa.
Acordar o monstro, que amanhecia em  urina e suor, despir-lhe as roupas coladas ao corpo. Empurrá-la suavemente para a casa de banho. Dar-lhe banho numa banheira antiga, água quente temperada com cuidado, o chuveiro há muito estragado, só a mangueira a rodopiar quando a pressão era muita, o monstro ora zangado ora contente, dependia do sono e da temperatura da água, sem uma palavra,sem um olhar, que o monstro autista não sabia falar nem tinha olhos de gente. Urinava, bebia e comia como eu, mas pouco mais, dormia dez horas seguidas sem se mexer na cama. Tirando isso, nem uma gargalhada aprendera, andava em passinhos curtos de criança e ás vezes parava no meio da passada, de súbito emperrada por uma força qualquer, ou uma voz na cabeça que só ela ouvia, ou um grunhido.
Algumas manhãs, antes do banho, enquanto eu a despia,  o monstro tapava a cara com as mãos e gritava sem razão, gritos agudos,  guturais, de alguém aflito. E eu tinha de congelar os gestos apressado dos meus vinte anos, suspirar, dizer palavras de sossego,  por momentos, eu sózinha na casa de banho com o monstro, sem mais ninguém para ajudar, suspendia os braços e olhava,  olhava pela janela,  plátanos e madrugadas e daí a duas horas eu iria saír dali para o ar livre, mas entretanto, por uns minutos parava de a despir, o pijama mijado a  meio da perna, o camisolão enrolado na cintura,  umbigo violáceo à mostra.
O monstro era imensamente feia, de uma animalidade óbvia que ninguém quereria tocar,  cabelo rapado de prisioneira antiga, olhos glaucos, abdómen distendido e pernas finas como uma figura de Bosch em carne viva. O couro cabeludo com tinha,  hirsutismo na face. Os dedos fininhos tinham unhas que era preciso cortar todos os dias para que ela não se ferisse ou mutilasse até sangrar. Quando saía da banheira, cheirosa de champô e gel de banho, embrulhava-a na toalha do hospício  e dava-lhe um abraço. Durante uns minutos a monstro ficava sereno nos meus braços, muito mais alta e imensamente mais gorda que eu, como um bebé amansado.
Desse  tempo em que eu lavava monstros  aprendi o essencial.
Todos os seres humanos merecem cuidado, mesmo aqueles que parecem monstros aos olhos destreinados dos indiferentes.

terça-feira, janeiro 29, 2013


Doença mental grave - internamento em unidades de psiquiatria

"Ultimamente surgiu a ideia de que os internamentos em unidades de psiquiatria não são necessários, ou devem ser absolutamente residuais. Os princípios até são bonitos - psiquiatria comunitária, não exclusão social das pessoas com doença mental grave, desinstitucionalização. O recurso a fármacos de nova linha também deu uma certa ilusória segurança aos médicos  ( sobretudo os de clínica geral, sem grande experiência na área da psiquiatria, mas que começaram a prescrever psicotrópicos como quem dá rebuçados) de que basta o tratamento ambulatório e a coisa vai-se resolvendo 
Quando a isto se associa a uma opção política de reduzir custos com internamentos - fechar centenas de unidades psiquiátricas em todo o país, cortar nos recursos humanos, deixar de fornecer medicamentos essenciais para doentes psicóticos, aí a coisa torna-se ainda mais dramática e explosiva. Socialmente, o internamento de um familiar próximo numa unidade de psiquiatria ainda é visto como um estigma social, uma vergonha e humilhação a evitar  todos os custo, mesmo que isso curte a vida de alguém.
Subjacente a esta tendência para não internar está também uma certa cultura pós-moderna e newage de "alternativas terapêuticas " de reikis, cristais, gotas não sei de quê, alinhamento de chakras , viagens astrais, cursos de milagres e auto ajuda onde o delírio de algumas pessoas é considerado normalidade e até fonte de lucro. Patranhas perigosas, a que recorre tanta gente aflita na sua doença psiquiátrica grave, a em vez de pedir acompanhento psiquiátrico especializado.  Em muitos casos , a pessoa com uma doença mental muito grave não tem sequer noção de que está doente, porque perdeu os sentido da realidade e o insight. Nestes casos  a família, os amigos, os cuidadores mais próximos ou os serviços de saúde/sociais, podem e devem intervir. Os internamentos compulsivos estão previstos na lei e podem ser accionados por familiares próximos ou por pessoas da comunidade. 
Vem isto a propósito do recente "surto " de homicídios de filhos seguidos de suicídio praticados por mulheres . Mulheres doentes, em estado muito grave. Não foram internadas.
E isto é de uma grande tristeza. Mas não era inevitável. "

domingo, janeiro 27, 2013

As mulheres



À porta do IPO, carros e carros estacionados em segunda fila, alguns com o inevitável rolo de papel higiénico envolto em crochet. Há qualquer coisa de simbólico e enternecedor neste adereço portátil de carros dos anos setenta. È  ao mesmo tempo uma afirmação de status social - ter um carro, sonho supremo de classe média-baixa,  permitia liberdades inauditas, viagens aventureiras, dejecções ás escondidas em pinhais bucólicos. Colocar isto à vista o banco de trás é uma mensagem libertária - não me limito a ter carro, sou mesmo um viajante. Mas a coisa não é só utilitária - tinha uma função decorativa. A criatividade no seu esplendor, a transformação de um artefacto  num objecto de arte, goste-se ou não da estética kitsch. 
Só mesmo o mulherio tuga para transformar a necessidade de cagar e limpar o cu numa obra de arte.

sábado, janeiro 26, 2013

O último dia

Às vezes Imperatriz sonhava. O bafo  do sertão, o cheiro da mãe, ´inda tão nova quando a deixara. Aquele calor de humidade perpétua que punha regos de suor no colo das mulatas, a frescura do anoitecer, os guinchos de brincar dos irmãos mais novos, o vestido de folhos descosido nas pontas que enfiara para entrar no barco de vinda.  Lisboa ao amanhecer.
Imperatriz, sentada no cadeirão da sala, espreitou pela janela. Contemplou  as casas, transida de frio. A sombra do cais embrulhado no xaile roxo da neblina estreitava a multidão. Ao longe, uma velha enrolava um colar de contas, sem se lembrar de quantos filhos já parira.
Imperatriz sentiu um sufoco, uma pancada funda  no coração. Quis chamar a criadagem, mas a voz faltou-lhe.
Sossegou quando viu ao longe o vulto do pai.  
José estendia-lhe a mão e Imperatriz compreendeu.
Estava na hora de voltar.

Verdade


O que somos ou o que escolhemos ser  não depende em absoluto de nós. 
A plasticidade do que poderíamos ter sido passa sobretudo pelas escolhas dos outros sobre nós, os trajes que nos vestem,  os olhares que nos catalogam, os retratos que nos fazem, os adereços que nos põem sobre o corpo, uma infinita possibilidade de ser caleidoscópicos Eus.
Estivéssemos sempre nus uns perante os outros e a nossa verdade seria outra.

O efeito placebo

Imagem 


Quando o marido de Dona Imperatriz caiu de cama, uma doença estranha, barriga distendida e desvarios, a mulher tudo fez para o curar. Rezas, mezinhas, boticários, ventosas, idas a Fátima a pé, de tudo experimentou. Foi então que o médico lhe falou das curas milagrosas de água radioactiva.
As Águas de Radium, ali ao lado, bebidas ou em compressas radioactivas, topo de gama de rendimento terapêutico, prometiam tudo curar -reumatismo, gota, hipertensão arterial, colites, edemas, insuficiência circulatórias e tumores malignos.O marido tinha de ir a termas para melhorar. Mas não umas termas quaisquer. Hipossalina, carbonatada mista, silicatada, muito radioactiva por sais de radium e rádon (considerada no congresso de Lyon, em 1927, como uma das mais radioactivas do mundo) as Termas de Águas Radium davam a promissora esperança de rápidas melhoras. 
E assim, a mando médico, Dona Imperatriz arrastou o pobre marido em estado terminal para o belíssimo Hotel de Serra da Pena, ao pé de Sortelha, onde se instalou com grande pompa de malões e chapeús domingueiros.
E enquanto o pobre homem bebia dez copos de água radioactiva por dia, fazia tratamentos de lama radioactiva, séries de enemas radioactivos e lhe aplicavam compressas com radioactividade no lombo esquálido, Dona Imperatriz jogava canasta, divertia-se nas festas e bailes organizados no hotel, passeatas e outros convívios de conjugalidade duvidosa.
O sacrificado desterro de de Dona Imperatriz valeu pena. Duas semanas depois de terminar os tratamentos e uns dias antes de morrer, o marido parecia  completamente curado.
Fotografia actual do Hotel retirada de http://ruinarte.blogspot.pt/2010/08/o-hotel-serra-da-pena-ou-aguas-de.html



A felicidade inevitável de Dona Imperariz

Não sei se Dona Imperatriz foi infeliz. Quando eu lhe perguntava ela ria, com aquele gargalhar baixo dos obesos monumentais
E,  uma tarde,  explicou-me. Nunca na vida tinha sido infeliz. Nunca tivera tempo.

Quase no fim


Quando conheci Dona Imperatriz já ela era velhíssima, centenária quase. Da loirice menineira pouco sobrara, e à medida que envelhecera, os traços de mulata albina tinham-se acentuado, os lábios grossos, as ancas monumentais. Falava grosso e forte. Até ao fim a sua voz ressoava na casa herdada de seu marido, sonho impossível de seu pai José: átrios de azulejo, escadarias de madeira, tetos de fino estuque, lustres de cristal, ameias de castelo, uma fonte de ninfas nuas na entrada, duas palmeiras monumentais que ela própria plantara.
Nos últimos anos da sua vida Imperatriz entrevara, acometida de súbito mal que a deixou paralisada. Mesmo assim governava a casa de cima a baixo, de manhã as criadas  e o rancho de netas vinha tirá-la da cama,  vesti-la lava-la e perfumá-la como na corte. Punham-na então no cadeirão da sala ou da cozinha, conforme o tempo ou as precisões, no meio de almofadas, rendilhadas mantas, botinhas de lã p'ara não esfriar os pés. E assim, mais aperaltada, mais perfumada e mais mimada que qualquer Imperatriz, passava o dia a conversar e a mandaricar. Arranjou uns óculos para poder ler e lia tudo e de tudo, o mais que podia, sobretudo à tarde, enquanto a luz  era boa. Contou-me que aprendeu a ler e a escrever aos trinta e cinco anos, quando enviuvou e se cansou de ser roubada à descarada por feitores, rendeiros e negociantes de gado. Contas ela sabia, mas botar coisa no papel, ler entrelinhas e contratos, escrever cartas, isso sempre tivera que pedir a outros. Não fez por menos – contratou o professor da escola primária lá da aldeia que lha dava aulas durante a semana, no salão grande, de porta aberta, p´ra evitar mexericos coscuvilheiros. Consta que Imperatriz, ela própria, terá ensinado ao professor novos fonemas e simplificações caligráficas, mas isso são as más-línguas. Assim que se apanhou letrada, em mais que uma arte, despediu o professor, deu uso completo à biblioteca empoeirada do marido, passou a mandar vir jornais da cidade, assinava revistas. Comprou cadernos e cadernos de linhas horizontais onde treinava afananosa escrita. Arranjou uma belíssima assinatura personalizada, em que o i maiúsculo inicial de Imperatriz revoluteava com um caracol por cima. E desatou a escrever cartas a toda a gente por motivos fúteis, postais de aniversários, felicitações de casamentos e baptizados, pêsames dos mortos. Não tinha mais ninguém a quem escrever.

Imperatriz, uma biografia quase inventada

Dona Imperatriz teve poucos filhos. Entre abortos e nados-morto sobreviveram dois. A triste lei da natureza, diziam, pois Imperatriz, anca larga, peito farto, emprenhava facilmente. O que não sabiam era dos medos fundos de Imperatriz nestas questões de boa parideira. Antes de alguém ver os recém nascidos examinava-os ela, como um animal, à procura dos traços genéticos de negridão que a denunciariam. Alguns não sobreviveram por causa disso. Quanto ao resto, como todas as mulheres da sua idade, sabia bem quantos filhos queria pôr no mundo e quais as artes dos desmanchos.
Imperatriz escolheu portanto dois para viverem. Uma menina infinitamente branca como ela. Um rapazinho forte que rapidamente se revelou moreno escuro, feio como breu.O contraste era ainda maior quando se sentava junto da mãe e da irmã aos domingos e feriados nos bancos da igreja. Elas nas suas loiríssimas auréolas de santa, ele encorpado e escuro, de nariz grosso.
As velhas suspiravam. Coitado do miúdo, saiu ao pai. Em em surdina, lamentavam a pouca sorte de Dona Imperatriz.

Imperatriz 4

Dona Imperatriz não é fingimento, viveu uma longa e farta vida de mulher trabalhadeira. Mulher transmontana, mulher-de-calças, diziam, ela que regia a casa com mão-de-ferro. Os homens na lide das terras, as mulheres a labutar limpezas,  mudas de cama, as grandes comilagens para os jornaleiros e resmas de roupa lavadas à mão e coradas ao sol. Tudo - as vidas das terras, a contratação dos homens, a venda do gado, o pôr galinhas no choco, a matança do porco, os casamentos e desaguisados da criadagem, tudo passava pelo pulso vertiginoso de Imperatriz.
Ninguém tem grande lembrança de seu nome de casada. É que, ao contrário das outras mulheres do burgo, o casamento foi a sua carta de alforria: libertou a sua imperial capacidade de mandar.
O marido,  um delicado e obeso lavrador rico da província,  ficara completamente enfeitiçado pela beleza da brasileira, desde a primeira vez que a viu, ao lado do cadavérico pai  As velhas falavam em beberagens com sangue de mênstruo, feitiçarias do outro lado do mar. Ninguém sabia da pretidão endémica da menina, mas havia qualquer coisa de fascinante na boca e nas ancas largas que punha os homens doidos. O cacique local ainda tentou convocar José por ínvias artes, tentando fazer da pequena sua amásia. Mas  Imperatriz, bateu o pé, e fez um tal alarido da sua pureza imaculada, tratou o velho rico com tal desdenhosa arte que não tardou em ser levada ao altar, mal completou catorze anos. José pode então deixar-se morrer. A menina ficava a salvo e ainda por cima rica, sonho muito mais improvável que a sua mansão de brasileiro, átrios de azulejo,  escadarias em madeira, tetos de fino estuque, lustres de cristal.  

sexta-feira, janeiro 25, 2013

Contos imprevisíveis - Imperatriz 3



Aos doze anos Imperatriz, tinha-se aloirado ainda mais, a pele de uma brancura buliçosa sob a lixeira da roupa, apetecível como um pecado. Estupefacto, José olhou-a uma e outra vez, como se nunca a tivesse visto, reviu na cara dela o nariz da irmã mais nova maria do céu, a sua preferida. E apesar de se saber morto, praticamente cadáver, no limite da decência que um homem pode suportar, condoeu-se até aos ossos. Não tardaria muito que Imperatriz fosse pasto de homens como ele. Animais abrutalhados de trabalho escravo, cachaça farta, fome de carne nova. Havia de ser vendida, leiloada, emprenhada como um bicho. Imperatriz, arredondada nos alvores da puberdade, menina ainda, auréola doirada, intocada beleza. A dor de José tinha o tamanho da sua vergonha. E foi tão funda que nesse dia vendeu o que tinha no baú e o próprio malão de couro da viagem, fez uma trouxa de panos com a roupa que lhe sobrava e comprou outra passagem de barco.
 Não vou abandonar este anjo por aqui, a menina vai comigo.
E foi assim Dona Imperatriz chegou a Portugal , 12 anos feitos , a bordo de um barco a vapor, desses que no início do século XX atravessavam o Atlântico para desaguar em Lisboa.

Contos imprevisíveis - Imperatriz 2



O pai José, quando fez quarenta e dois anos convenceu-se finalmente de que nunca juntaria dinheiro para fazer a sonhada casa brasileira na aldeia, ameias de castelo, uma fonte de ninfas nuas na entrada, duas palmeiras monumentais. Estava gasto, perdido, roído de diarreias e suores, com uma dor de peito de tísico-em-fim-de-linha. Escarrava sangue dia sim, dia não, o pouco que amealhara em quinze anos de escravatura descontando os gastos com putas e sobrevivência básica, pouco mais dava do que uma passagem de barco.
Mandou escrever uma curta carta à mulher, Maria das Dores, a falar de saudades, anunciando regressos. Juntou as coisas de amortalhado, parcos haveres, parcos patacos, um malão de couro onde cabia tudo de tão pouco. Vida dura, trabalho que gasta até aos ossos, fome de carne nova, sonhos de átrios de azulejo, de escadarias, tetos de fino estuque, lustres de cristal, cachaça barata.
Despediu-se da preta que o aturara submissa desde quase criança. Carregada de filhos, mulatos todos, carregada de dores, das cores todas, uns empurrões de vez em quando que isto da cachaça barata é mesmo assim, um berloque de contas no natal, mais precioso que aliança de ouro, a preta que chorava agarrada aos filhos, agarrada ao homem, José, meu José e ele a saber-se morto, praticamente cadáver, a tossicar explicações do que não podia explicar, aquela saudade, aquela dor-de-fim-de-mundo, aquele desejo sem explicação de ser enterrado em casa, de ouvir os sinos no funeral, de ver oliveiras, sentir o cheiro das queimadas de novembro, as primeiras neves que não mais voltara a ver. E foi nesse momento, enquanto se arrancava a custo dos braços da mulher, que o seu olhar embasbacado tropeçou em Imperatriz.

Contos imprevisíveis - Imperatriz 1


Dona Imperatriz chegou a Portugal com 12 anos, a bordo de um barco a vapor, desses que no início do século XX atravessavam o Atlântico para desaguar em Lisboa. No tombadilho, de mão dada com o seu pai José, um transmontano de gema arrasado pelas febres do sertão brasileiro  que vinha morrer à terra, ao colo da legítima, Imperatriz comtemplou as casas, transida de frio. A sombra do cais embrulhado no xaile roxo da neblina estreitava a multidão. Imperatriz sentiu um sufoco, uma pancada no coração ao ver o pai a chorar. Pelo regresso.
Imperatriz nascera branca, branca de mais. Tão branca quanto a mãe era preta como um tição. A mãe que a parira longas horas, um pouco mais velha do que ela era agora. Garotinhas do sertão. Pasto fácil para os portugas transmontanos esfomeados por carne nova nos intervalos do trabalho escravo e da cachaça barata. Quando nasceu, toda a gente embatucou com a belezura de Imperatriz, bochechas rosadas perfeitas, mãozinhas translúcidas e, pasmo dos pasmos, em vez da carapinha incipiente, uma melena loira como auréola de santa. O pai, embasbacado, comentou - parece uma princesa, a mãe exaurida e orgulhosa refilou do catre, princesa não, que é pouco. José gargalhou, pensas que é filha do imperador ou quê? Imperatriz ficou, pois claro.

Estado confusional

Acho que a comunicação virtual induz uma espécie  de esquizofrenia colectiva que é o relato do mundo de hoje. Ser uma coisa e o seu contrário, misturar imagens com verdades fragmentarias, aceder a ditos e ditotes com a mesma facilidade com que se acede aos dados da última investigação científica, vender propaganda ideológica em saldos de fim de século, e , no meio desta névoa toda virtual, 
a poesia,  ainda

Eu topo-os logo

"Poucos minutos depois de entabular conversa com alguém sou capaz de aferir se essa pessoa está a tomar antidepressivos. Por vezes basta um pequeno comentário:
— O senhor doutor tem uma gravata muito bonita...
— Obrigado, digo. ‹‹Estás a tomar a pílula››, penso."

Post do  PC

quarta-feira, janeiro 23, 2013

Hoje

Definição de mulher  na TV, agora mesmo, a propósito da religiosidade:

"Sou uma católica em recuperação..."

Que grandes Mulas

Esta cáfila é tudo gente impoluta.

Obviamente deve ser presa

No Brasil, se uma criança de 15 anos quiser abortar nas primeiras semanas da gravidez, é crime.

E se essa criança recorrer ao aborto clandestino, correr risco de vida e for assistida num hospital, fica sinalizada como sendo criminosa.

E se a mãe da criança, ao saber da situação da filha acorrer a ajudá-la, é tratada como uma criminosa também.






Chinese Man Sues Wife For Being Ugly And Wins

Os valores dos mercados

Hoje fomos vendidos. Parece que foi um êxito. A nossa dívida é apetecível porque milionariamente lucrativa. O orgasmo colectivo que acompanha a nossa venda pública em mercados globais é a imagem da sociedade em que vivemos. Obscena.

Ideação suicida

A encruzilhada é o deixar de se acreditar. Saber que não há futuro, ter a consciência da finitude, da total impossibilidade de continuar.
 De certa forma, nem todos os suicidas estão desesperados.
Alguns estão apenas profundamente lúcidos.

O paradoxo de um SNS eficaz e gratuito

O Japão é um exemplo paradigmático. O envelhecimento populacional e a pressão que este fenómeno exerce sobre o Estado social é o resultado de décadas de funcionamento de um sistema de saúde universal e gratuito.  Ou seja, há mais velhos porque o Japão tem um  SNS é muito eficaz e gratuito para toda a população. Tão eficaz que se traduziu numa explosiva baixa da taxa de mortalidade e num aumento dramático da esperança média de vida numa única geração.  No Japão a longevidade aumentou extraordinariamente desde a década 50 do século passado e são cada vez mais as pessoas que ultrapassam os 100 anos. 
É este o paradoxo de um SNS de qualidade e altamente eficaz - uma rápida transição demográfica e uma alteração da pirâmide demográfica, Quanto mais velhos houver numa comunidade, mais elevadas   as necessidades de cuidados de saúde devido às patologias crónicas associadas ao envelhecimento e maior a pressão  (económica ) sobre a capacidade de resposta dos SNS. Em suma, quanto maior a eficácia e qualidade do SNS, quanto mais fácil a sua acessibilidade, maior a probabilidade deste sistema ter dificuldades de sustentabilidade a longo prazo.
Dito de outra forma, a dificuldade de sustentabilidade económica dos serviços de saúde  não resulta do despesismo ou da má gestão ,  mas da sua eficácia e qualidade.
É a este paradoxo que as sociedades desenvolvidas têm de dar uma resposta civilizacional, nomeadamente quanto a novas formas de financiamento e organização dos SNS.
 Ou então optar pela eutanásia em massa associada a uma aumento programático da mortalidade  por falta de assistência médica como opção política.


Versão "pepa" do empreendedorismo tuga... A Sra Cavaco pôs BOTOX ou aquele olhar siderado é de pasmo com a tontice da senhorita?



terça-feira, janeiro 22, 2013

Os gordos

A mulher travessa o hall do centro comercial, com um cachecol roxo á volta do pescoço elefantíaco. Caminha lenta e pesadamente, arrastando os corpo todo aos sopetões, primeiro o queixo bamboleante, depois a barriga gigantesca, por último as pernas, onde as dobras celulíticas gelatinam debaixo das saias. A mulher é tão imensa que o ar se mexe quando anda, como se nadasse.
Tomo-lhe o peso com os olhos. Pelo menos 160  kilos num metro e sessenta de altura.
 Feitas as contas, a mulher tem qualquer coisa de glorioso como uma estátua grotesca ou um ornamento rocócó.

A inevitabilidade da eutanásia dos velhos

O economicismo puro e duro tornará a eutanásia inevitável nos países desenvolvidos.


Por cá, aposto que  Ministro das finanças pensa o mesmo mas não se atreve a dizê-lo em voz alta.

domingo, janeiro 20, 2013

Apoio a famílias numerosas sim, desde que não sejam pobres

A mulher em dez filhos. Num país que anda por aí a chorar baba e ranho pela quebra da de natalidade, esta mulher é uma heroína. Dez filhos é um feito extraordinário, nos tempos que correm. Esta mulher devia ter apoios especiais, menções honrosas, subsídios de todo o tipo para as crianças, elogios públicos. Uma mulher que está disposta a parir assim crianças é alguém excepcional. Ainda por cima, é boa mãe. Cuida das crianças, não é negligente, não há qualquer situação de maus tratos ou negligência ou abuso, apesar das dificuldades económicas.  
A mulher é jovem,  ainda pode parir mais, ainda quer parir mais, para felicidade de nós todos. Não é só a barriguinha da Assunção Cristas que merece regozijo e protecção. A maternidade é um bem e um bem social inestimável. Que não tem preço, embora tenha um exorbitante valor económico ( pra os teóricos fundamentalistas da coisa) 
Então qual é o problema? Vários. A mulher é pobre. É imigrante. É preta. É muçulmana. Por isso foi condenada a ser esterilizada compulsivamente por um Tribunal português.  Como não cumpriu ( e bem), retiraram-lhe do colo sete dos seus filhos. Sete. 
A mulher tem um nome. Liliana Melo. Um rosto. Não tem voz, nem direitos. 
Nem sequer tem direito ao seu corpo ou á sua fertilidade.

Conta-me como foi - os retornados em visão romântica

Não é apenas a RTP. 
Portugal está entregue aos retornados.
Talvez haja uma explicação psicológica mais funda neste revanchismo ideológico institucionalizado contra os valores da democracia, da liberdade e os direitos fundamentais dos cidadãos portugueses.

sábado, janeiro 12, 2013

Cuidar

Os novos judeus e o relatório do FMI



Em tempos de colapso económico e social e perda de soberania nacional ( ainda por cima induzida internamente como estratégia política para alcançar o poder ), é fácil encontrar bodes expiatórios e discursos de ódio em que um grupo social de repente acarreta os custos e as razões da crise.

Em Portugal, os governantes apontaram o dedo aos culpados dacrise nacional – os funcionários públicos, em especial os professores do ensino público e os velhos reformados. De dedo em riste, explica-se aos pascácios a causa da miséria em curso e aponta-se um alvo. De uma penada, acitam-se os cães do ódio e destrói-se um consenso social e a solidariedade intergeracional que foi construída ao longo de décadas.
Para os "infames" bodes expiatórios, há uma solução final -  a punição extrema. O campo de concentração do desemprego, da pobreza forçada e da velhice indigente. 

Quanto aos velhos, é simples, assim que deixarem de trabalhar,  quanto mais depressa morrerem, menor é a dívida pública. Se o trabalho liberta, o desemprego salvífico mata.

Heil!

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