sexta-feira, março 05, 2010

Luminiscências

a minha avó tomava chá assim, longíssimos bules tarde fora, o cheiro acre a invadir a casa, litros e litros
e o médico a aconselhá-la cautelas coronárias,  tanta teína dona palmira, olhe a hipertensão,
e ela teimosa, chá  de ceilão, do mais explosivo, escuro, não castanho, preto, nada de saquetas dietéticas qual quê, chá em planta, chá seco como restos de tabaco,
os tios vinham do estrangeiro e ofereciam à avó latas de chá de todos os lados
 em vez  de coisas mais óbvias,
latas lindíssimas que ela alinhava na cozinha por intensidade pictórica, latas com desenhos chineses, gôndolas, deusas de mil braços, pagodes prateados,
no verão era chá gelado com açucar  e limão em jarras grandes
(a minha avó nunca frequentou pastelarias de bairro onde as velhas senhoras se encontram entre bolores e caxemiras a bebericar tédios chalados),
bebia chá a sério, chá a fervilhar de solidão
e o médico
tenha cuidado com o coração, senhora palmira
o médico morto de enfarte e a minha avó no funeral, muito composta, toda de preto
era tão bom médico, dava-me conselhos tão bons
a chaleira ao lume, horas e horas
não tinha vícios, nem percalços, filhos paridos, filhos criados, filhos amortalhados, o bule de chá sempre cheio, a roupa preta, uma outra blusa de seda mais clara ( verde escuro, lembro-me)
ela tão pequenina, muito pequenina desde sempre
quase mais pequena que a minha infância
um pequeno vulto de porcelana a beber chá ao fim da tarde
só por birra, só por prazer,
e até ao último dia dos seus 94 anos
em que entrou ho hospital pelo seu próprio pé
pequenina e direita
e se escandalizou
porque na enfermaria onde havia de morrer dois dias depois
não havia chá como deve ser
só uma aguinha chalada pra doentes terminais
quero arroz doce, exigiu ao almoço, mas não havia arroz doce nem chá inglês
e nessa noite entrou em coma e quando a fui ver de manhã já tinha morrido
as últimas palavras que me disse foram
" deixem-me descansar que eu quero ir para o céu"
e foi
é por isso que eu tenho a certeza que o ceú está cheio
de enormes bules luminiscentes a perfumar estrelas
chá  de maçã canela,
chá verde,
chá de menta como o deserto
chá preto,
o mais tórrido e infernal.

2 comentários:

Vítor Mácula disse...

a pequena palavra "chá" acabou de tornar-se inatacável: venceu a morte.

um dos elementos de fundo da minha fé, penso que é: que terrível é, o esquecimento desta beleza toda da vida ser a última palavra, e que a morte é mais forte do que o próprio universo. de certa maneira até, nesse elemento ou aspecto, é mais um desafio que uma certeza, esta coisa da fé em mim. é o clamor de Deus que clama na Bíblia inteira, na história cristã, na nossa história pessoal, e a bem dizer, em tantos outros lugares ;)

provas? este chá basta. só não basta para quem não se apercebe, que está vivo, isto é - todos nós; e que qualquer chávena de chá, qualquer pessoa, qualquer instante no seu esplendor, é vivo, excessivamente belo e vivo ;)

é por vezes um dos sentidos daquele dizer dessoutro chapeleiro maluco, o príncipe Mushkine: A beleza salvará o mundo; claro que depois de proferi-la, teve um ataque epiléptico. só deus tem tanta vida para aguentar tal ;)

há momentos assim, pelo menos

está excessivamente belo, este teu post.

não me vou esquecer, de quando chegar ao céu, pedir para beber um chá com a tua avó.

beijo e vénia

BLUESMILE disse...

Querido Vítor;

Fiquei comovida com as tuas palavras.
A sério.( Eu adorava a minha avò)