Hoje encontrei Francelina. Não mudou nada. É espantoso como aos 66 anos tem o mesmo corpo e a mesma cara que tinha aos 36. Pelo menos assim parece nas fotografias antigas dos anos oitenta - o mesmo penteado, o mesmo corpo escanzelado, o mesmo tom de cabelo, as mesmas rugas. Há quem diga que a maldade conserva e é capaz de ser assim. Porque Francelina foi sempre uma daquelas pessoas de uma inteligência venenosa e com um objectivo maior - dinheiro, dinheiro, dinheiro.Trocava sempre os turnos das urgências para trabalhar aos fins de semana e feriados. Assim ganhava mais uns trocos em horas de qualidade. Chegava a fazer 24 horas seguidas de serviço, com umas sonecas de permeio nas marquesas dos gabinetes médicos. De caminho ainda fazia umas consultas na privada. Foi assim que conseguiu o primeiro carro, depois os apartamentos, a seguir a vivenda no campo e por aí fora. Francelina tinha uma língua tão venenosa que corria a anedota no serviço que se algum dia a mordesse acidentalmente morreria intoxicada. E assim controlava chefes, jovens estagiários, médicos maçaricos a meio da especialidade, e a todos aterrorizava com a perspectiva de lhe caírem nas garras, ou seja, na boca. Uma tarde soube-se que o marido de Francelina estava com gonorréia. As vítimas do costume sorriram e preparam-se para uma vendetta de cusquices e piadolas intermináveis sobre o assunto. Em vão. Nesse dia Francelina contou o episódio em altos berros, entre gargalhadas divertidas, a todo o staff. Descreveu até pormenores da genitália conjugal, o recurso a divertimento extra enquanto ela moirejava para pagar o Range Rover, a quarentena decretada no leito conjugal. Partilhou as dúvidas sobre o antibiótico de largo espectro que escolheu para o tratar. E, com requintes de sadismo, explicou que ela própria fazia questão de o administrar por via intramuscular.Escolheu as oito agulhas de maior calibre para levar para casa. O antibiótico era muito espesso, explicou.
Os colegas engoliram em seco. Não houve mais piadolas sobre gonorreias conjugais.
Os colegas engoliram em seco. Não houve mais piadolas sobre gonorreias conjugais.
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