sexta-feira, setembro 14, 2012

São Francisco II

Todos o achavam irremediavelmente velho muito antes dos cinquenta anos.
A cegueira e paralisia tinham chegado tão insidiosamente que as pessoas se habituaram a elas. Nada havia a fazer, nem dinheiro para médicos ou hospitais da cidade.
A culpa, achava Francisco, eram aos gazes que apanhara  em cheio na cara nas trincheiras da Flandres. Dois anos de gélidas condições,  atolado em lama e sangue que corroía os ossos. Francisco falava muito dos gazes das trincheiras mas nunca falou das atrocidades pútreas de corpos mutilados à granada. Aguentou a batalha Batalha de La Lys e recebeu duas medalhas de bravura, que a família vendeu em horas de aflição.
Ficara estabelecido desde cedo que a cegueira e parilisia progressivas  foram causados pela guerra. A primeira, a terrível. O grande horror que arrancou todos os jornaleiros da aldeia. Carne para canhão.
Francisco sentia-se permanentemente grato.  Regressara.
Foi então que a santidade de Francisco começou. Á medida que o seu corpo se desfazia aos bocados, descobriram nele uma estranha e rara qualidade: Francisco era um homem bom. Não dava uma imprecação, um gemido maledicente, um queixume, não alevantava a voz , tratava o mulherio da casa com doçura e reconhecimento. Nas décadas que passou no seu esconso tugúrio onde não entrava o sol, Francisco rezava terços, apalpava as paredes e os rebordos da colcha para se orientar no espaço, decifrava os sons da rua e os solilóquios da mulher que vinha para o pé dele ao fim do dia contar-lhe a vida. Era assim que se dizia. Contar a vida. E era ele que a confortava e lhe dava esperança.
Podia ter acontecido   - e a mulher sabia isso - que a incapacidade física num homem na flor da idade, habituado a viver da força dos seus braços, o tornassem amargo, quezilento, ou, pior que isso, violento. Com aquela violência destrutiva dos fracos. Nada disso.

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