quarta-feira, setembro 12, 2012

Ofélia, a porteira II

A entrada do prédio tem mármore rosado no chão.
Três degraus de mármore escondem as caixas de correio, mesmo em frente à porta da casa-da-porteira. O  teto trabalhado, em estuque, tem uma filigrana doirada quase ingénua a toda a volta e a porta de entrada, de ferro forjado, desenhos de arte nova.
Dona Ofélia gosta especialmente do elevador de madeira, com porta de correr, cheiros muito antigos impregnados no tapete, botões doirados a indicar cada andar. O elevador tem um cheiro envernizado que a entontece, um barulho de roldanas lentas que a faz estremecer quando tem de subir ao sexto andar para buscar a esfregona nas arrumações do sótão. Já pensaram  em substituír o elevador por um mais moderno mas Dona Ofélia opôs-se violentamente. Alegou questões de economia, saudosismo e até estéticas - o elevador é de facto belíssimo. Mas omitiu o mais importante. Do rés-do-chão, do umbral da sua porta de casa-de-porteira, consegue perceber, pelo chilrear das roldanas e pelo barulho das portas metálicas a abrir e a fechar, em que andar o elevador pára, quantas pessoas sobem e descem (mesmo de madrugada) os pesos dos sacos que carregam, se estão calmos ou impacientes com a subida. Foi assim que apanhou o senhor Vicente, altas horas de madrugada a trazer a amante para o terceiro esquerdo, enquanto a sua esposa, acamada com uma trombose, dormia no quarto conjugal. Ou o senhor João a carregar mobílias clandestinas para os arrumos do sexto andar. Ou a Dona Paula, do quinto esquerdo, com um saco de lixo suspeito às três da manhã,  dizendo que ia pôr o cadáver do gato num contentor do lixo.
Dona Ofélia regista de memória estes pequenos pormenores histriónicos sem que um só cabelo se mova de compaixão. Quando muito, enfia as mãos nos bolsos da bata-de-porteira, aos quadradinhos azuis e brancos com um cabeção branco debruado.

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