quarta-feira, setembro 12, 2012

Ofélia a porteira III

Dona Ofélia, vermelha de excitação, bateu com a porta do rés-do-chão. Despiu a bata no quarto  esconso da casa, virado para o pátio das traseiras, um  triângulo de cimento onde as vizinhas de cima, negligentes, deixavam caír cuecas do estendal da roupa ou se amontavam piriscas.
Dona Ofélia suspirou, um carrerinho de suor a escorrer-lhe pelo sulco intermamário. Estava calor. O filho Dionísio tinha deixado aberto o computador numa página do facebook com fotografias eróticas. Dona Ofélia estava cansada, indolente,  não conseguia explicar aquela opressão no peito. Por mais que se esforçasse, a vida íntima dos habitantes do prédio estava a escapar-lhe por entre os dedos, que é como quem diz, por entre os olhos. Por outras palavras - passavam-se coisas naquele pequeno mundo que ela não sabia. Ora isso era completamente inconcebível. Pois ela era a porteira. A Dona do prédio. A única capaz de garantir a ordem,  os bons costumes, aquela complacente hierarquia que faz o universo funcionar. Se alguma coisa escapasse ao controlo da porteira o delicado equilíbrio entrava em ruptura. Uma qualquer desgraça ia acontecer - um incêndio, um homicídio, uma explosão de gaz, uma ruína.
Dona Ofélia ergueu os olhos para as esquinas simétricas do mamarracho em frente.
O céu de fim de dia, listrado de azul e rosa fez-lhe uma grande impressão e deu por si com os olhos maraejados de lágrimas a espreitar para as mamas gigantescas de uma rapariga qualquer no écran do computador. As pessoas já não escreviam cartas de amor, os envelopes de condolências com uma barrinha preta no canto direito tinham deixado de existir, ninguém mandava postais de férias do algarve ou de outros sítios mais exóticos. E as casas de penhores já não mandavam cartas de avisos aos devedores. Agora o carteiro só entregava cartas de bancos, publicidade enganosa, cartões de crédito fluorescentes, nada que se pudesse entreler às escondidas. E o entrar e sair no prédio era um corropio de tal ordem entre os rapazinhos de entrega de pizzas, os clientes das meninas brasileiras do quarto andar, os amantes da Rosinha do segundo,   a estudantada que tinha arrendado o terceiro esquerdo,  que Dona Ofélia nada mais sabia. Das suas histórias, vanglórias, acidentes e incidentes, desesperos e euforias, festanças e enterros.
Já ninguém tinha medo da língua da Dona Ofélia ou do cabelo onde a maldade e coscuvilhice se cimentavam com laca.

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