A notícia ocupa meia dúzia de linhas num cantinho do jornal diário. Ontem, numa aldeia da Somália ocupada por milícias de radicais islãmicos uma mulher de 23 acusada de adultério foi apedrejada até à morte, enquanto os elementos da milícia, armados, impediam qualquer hipótese de salvamento. Mesmo assim, uma criança furou o o cordão militar e tentou proteger a mulher. Foi abatida a tiro, juntamente com um outro familiar. O horror da descrição jornalística, bate-me na alma enquanto tomo o café da manhã. Sei que parece completamente inútil este horror perante o mal absoluto, penso nesta criança abatida a tiro para defender uma mulher ( mãe? irmã mais velha?) de uma multidão ululante, penso na outra mulher que foi salva por um homem que se curvou a rabiscar coisas na poeira, penso que estas mortes, como outras, não podem ser aceites com uma passividade sombria, têm de fazer mover alguém,
enquanto houver violações destas somos todas nós as apedrejadas, a criança abatida a tiro é o nosso filho, muitos dos que nos rodeiam têm pedras e sangue nas mãos, não é possível tolerar mais esta barbárie e, no meio do horror, fica o gesto daquele menino, o seu último gesto de amor ao proteger uma mulher ensanguentada antes de ser abatido como um cão, penso no Outro também abatido como um cão em nome da moral e bons costumes religiosos, o tal que se recusava a atirar pedras, penso no mal que se cola aos dedos como tinta do jornal enquanto o café arrefece, penso no que podemos nós fazer, nós, os Zés-Ninguéns deste mundo, os que assistimos às lapidações do lado de cá, braços cruzados,
foi ontem, precisamente ontem e não há dois mil anos, a mulher morta é a nossa vizinha, a criança abatida morava na casa ao lado, os que empunhavam as pedras são da nossa família.
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