terça-feira, fevereiro 28, 2012

Micaela

Micaela trabalha na padaria todos os dias das sete horas até ao fim da tarde.
Chega muito branca, escanzelada do frio da madrugada, na mota que comprou a prestações.
De pescoço longilíneo, veste a bata às riscas cor-de-rosa e brancas, ata o avental e o barretinho cirúrgico dos aspirantes  a pasteleiros.
Tem um rosto muito estranho, do queixo afunilado, o maxilar superior deixa antever os incisivos amarelados. Sorri muito com as piadas do rapaz que trata das misturas da farinha.
Micaela adora trabalhar.
Sai de casa todos os dias com a mesma alegria com que as miúdas mais novas planeiam uma ida à discoteca.
Antes de saír  penteia rigorosamente o cabelo fino castanho-claro com um risco-ao-meio que lhe divide o crânio em dois hemisférios absolutamente simétricos.
Micaela nunca usou baton porque lhe deforma ainda mais a boca e faz sobressair o amarelo dos dentes. Todo o dia Micaela amassa, carrega, limpa o chão, faz trocos em moedas pequeninas, embrulha pães e biscoitos, numa algaraviada de garridice que lhe escorre pelo avental às riscas. Côr-de-rosa e brancas.
De vez em quando, perto do forno, os braços enormes do rapaz que trata das misturas da farinha, roçam-lhe o dorso. Micaela arrepia-se de alegria e uma súbita quentura avermelha-lhe o pescoço alto.
Nessas alturas sonha que vai concorrer ao Dr White e chegar à padaria vestida de princesa e com um sorriso mais coruscante que o Paulo Portas depois do último branqueamento dentário.

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