uma vez, na rua, cruzei-me com um apanhador de conchas. tinha os olhos feridos pelo sal, as mãos abertas pelo ácido das marés os lábios gretados por versos inacabados. recitou-me fórmulas do campo; anunciou-me a verdade de antigas profecias. olhei para cima: e o céu continuava azul, como se nada se passasse. mas ele abriu o cesto das conchas; e um movimento de caranguejos mostrou-me o fundo da existência. talvez eu estivesse a falar com um morto; ou as suas palavras me distraíssem do verdadeiro significado das coisas."para que serve a poesia, afinal"? e continuou o seu caminho, para que eu seguisse o meu, como se nunca nos tivéssemos encontrado.
Nuno Júdice, "As coisas mais simples", Dom Quixote
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