O homem sem cara encosta-se à parede como uma sombra. Não é apenas a mutilação no rosto, o rasto da cirurgia invasiva a desmontar o perfil do queixo, nem sequer a cicatriz que lhe corrói a face esquerda, nem as sobrancelhas sem pelos a adivinhar as sessões de quimio escondidas pudicamente pelo boné xadrez.
O que me inquieta no homem é este gesto de se encostar à parede, um gesto de tristeza infinita de animal acossado, um corpo todo escondido do olhar alheio, a vontade obscura de se anular, de se afundar na sombra, de se encolher em si mesmo até à transparência. E é este gesto, de abandono absoluto, de solidão absoluta, que me dá uma imensa vontade de rezar, numa proximidade de transfiguração da nossa humanidade.
Rezo por ele enquanto desço os dez pisos do hospital na direcção do carro. Não por ser doente, não pela mutilação da cara, nem sequer pela fragilidade do corpo contra a parede.
Rezo porque há qualquer coisa de sagrado neste sofrimento obscuro, qualquer coisa que nos leva a inclinarmo-nos interiormente face ao indizível e a clamar amor, não para mim mas para um outro desconhecido.
2 comentários:
andamos muito sacramentais por aqui ;)
oracção funda, esta
(sem gralhas)
beijo, bluesmile
Abraço...
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