Todas as tardes Dona Rafaela sai para o jardim, com a amiga Miquelina. Andam muito juntas, como duas irmãs siamesas saídas da escola.
Hoje traz um chapéu branco de ráfia, de abas largas, que lhe cobre parte dos óculos, sob o qual piscam, impiedosos, dois olhinhos de sexagenária míope. Um camisolão enorme, de fundo branco, desce-lhe em pregas até às coxas. Dona Rafaela não percebe nada de moda e Micaela não lhe diz que o camisolão branco com desenhos geométricos garridos a fazem parecer uma matrona descomunal. Na mão trazem livrinhos e pagelas que vão distribuindo aos transeuntes - velhos casais sentados nos bancos de jardim, mulheres ansiosas que passeiam cães, adolescentes de calças caídas que fumam ensolarados cigarros. Dona Rafaela tem a pele muito branca de loira antiga e carrega pulseiras de várias cores que tilintam à medida que saracoteia os braços. De vez em quando metem conversa com quem encontram no jardim . Falam de coisas estranhas, o reino de deus, o fim do mundo, a morte que se avizinha e a escolha dos eleitos.
Desde que foi arrebanhada pelas testemunhas de Jeová que Dona Rafaela remoçou - ouvem-se as suas gargalhadas jardim fora, estuga o passo cheia de genica a perseguir donos de cães arrastados pela trela, mete-se com velhos pasmados ao sol e até pintou o cabelo de castanho arruivado na cabeleireira do bairro. Sim, que a apresentação também conta pra proclamar o reino de deus. A religião é mesmo o òpio do povo
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