Dona gilberta inclina a cabeça enquanto confidencia maleitas. O busto excessivo tremelica sob a camisola vermelha escura enquanto desfia a operação aos pólipos, o mioma e as cataratas.
As mãos cheiram a lixívia, um cheiro forte que se sobrepõe ao vapor da laca comprado no LIDL e a envolve com a aura angelical das coisas desinfectadas.
Dona gilberta tem sessenta anos vigorosos e ainda trabalha a dias nas limpezas para ganhar o sustento.
O amante com quem conviveu amorosamente durante trinta anos morreu-lhe e agora ficou sem nada. Enquanto repete sem nada, sem nada, o busto excessivo soluça suavemente num balanceio de maresia, sem nada, sem nada , abana as mãos e o cheiro da lixívia espalha-se como incenso no vão da escada.
Os filhos - os legítimos- do defunto entraram-lhe porta adentro e exigiram tudo, roupas, recordações, fotografias, relógios e prendas, contas bancárias, uma vivenda partilhada a dois durante décadas ( ou seria a três? - dona gilberta não tem agora certezas absolutas).
Na dispensa antiga fez uma capelinha de aparições, um altar onde três nossas-senhoras-de-fátimas e muitos pastorinhos de vários tamanhos se acotovelam com flores de plástico, entre cortinas de tule cor de rosa com folhinhos na ponta.
È o meu refúgio, sussurra, e fala-me do amor de deus que a sustenta. A fotografia a preto e cinza onde um homem de bigode - disputado até depois da morte por duas mulheres aflitas - encosta a cabeça precisamente no colo da senhora de fátima mais pequenina, enlevado da mais eterna satisfação.
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