quinta-feira, junho 26, 2008

Entre o céu e a terra

Apanhámos o último autocarro em Cochabanba depois do jantar. Era uma viagem de duas horas até à aldeia mais próxima, meia dúzia de kilómetros e uma viagem alucinante em plena cordilheira dos andes, à beira de vertiginosas falésias, num escuro de breu. A camioneta gemia em cada curva , as vibrações dos bancos faziam tilintar os bolsos da farda de escuteiros, agarrávamo-nos ao assento como se estivéssemos numa jangada e embora não ultrapassássemos de certeza os 40 kilómetros por hora, tínhamos a ilusão de viajar a uma velocidade louca. O joão à minha frente, começou a vacilar, sinto-me mal, tou mesmo mal, via-o a contorcer-se eh pá deixa-te de cenas, aguenta um bocado, a empalidecer, num esgar de dor, não consigo, sinto-me mal, não sei o que tenho, tou mal pá, tou.... não aguento, e de repente a levantar-se num pulo, a correr para a porta da frente, a gritar ao condutor pára aqui, numa urgência de cão aflito, corri atrás dele por puro instinto, já o autocarro travava antes da próxima curva, o meu amigo começou a vomitar ainda dentro do autocarro, saí com ele para a estrada, meio sufocado pelos vómitos, ele a contorcer-se no chão, numa aflição de vísceras liquefeitas, eu a segurar-lhe o corpo que tremia, também eu tiritava, senti um choque térmico quando saí do autocarro, cá fora seguramente estavam cinco graus negativos e eu de t-shirt suada, rostos divertidos espreitavam das janelas, e, enquanto segurava a testa do joão, fui atingido por uma luminosidade estranha.
Olhei para cima e parei de respirar. Mesmo em cima dos meus ombros, a abóbada celeste explodia numa miríade de estrelas como nunca tinha visto, uma cidade deslumbrante abateu-se sobre mim, não havia lua, só um manto de estrelas desenrolado à volta dos picos dos Andes, duma beleza tão aguda que senti os olhos marejarem-se com uma emoção que nunca tinha sentido. Parei de tiritar com frio, ao meu lado o joão vomitava as tripas e eu ali siderado, não é possível, não existem tantas estrelas, com aquela luz a ofuscar-me, uma luz transparente, lenticular, fervilhante, esmagado de alegria, entre o vómito e o infinito.

quarta-feira, junho 25, 2008

O pensamento é a respiração da mente.

O fascínio do latim.

A palavra Fascínio tem a sua raíz etimológica na palavra latina Fascinus que significa pénis erecto ou amuleto mágico em forma fálica contra o mau olhado.

Não sei se vem daí a fascinação de alguns pelo latim.

sexta-feira, junho 20, 2008

A banalidade do bem

Deve ser um sinal qualquer quando o meu filho mais novo adormece a cantarolar o hino da alegria.

Do amor


Casaram ao fim de 50 anos de vida amorosa em comum.
É uma história de amor extraordinária, de persistência e fidelidade face à hipocrisia social

quinta-feira, junho 19, 2008

Da derrota

À medida que percorro em passo rápido a relva do jardim, hipnotizada pelo ondulado verde escuro das tílias, sinto o torpor estranho da cidade, numa tensão latente à beira da explosão.

As ruas estão desertas, não há trânsito, das janelas abertas para o parque ressoam de vez em quando gritos ou insultos a acompanhar uma jogada, pressente-se que o jogo está duro quando em pelo menos três apartamentos, homens nervosos assomam à varanda com gestos de desesperada espera, há um silêncio barulhento na rua sem a hora de ponta do costume, o verde torna-se lentamente mais escuro e só a minha respiração ofegante enche de suor a tarde, desisto do jogging e de um ou outro pensamento metafísico.

Acabo por me render a ver a segunda parte do jogo no café do bairro, entre cervejas e camisolas da selecção.

terça-feira, junho 17, 2008

PSD

"Não se deve esperar que as mulheres só pensem na política 24 horas por dia». Disse mané, Presidente do maior partido da oposição, instada a comentar a gravíssima crise política e social actual.
Só podemos concordar - isso só se espera dos homens.
Afinal, mulheres têm de tratar dos filhos e dos netinhos, não podem maçar as suas cabecinhas com coisas da política a tempo inteiro, né?

O livro

Soror Flâmula da Encarnação desapareceu do convento onde há décadas vivia aprisionada precisamente no dia 15 de Maio de 1836.
Antes do desaparecimento inexplicável da sua cela árida de carmelita, Soror Flâmula tinha sido acometida de uma prolongada doença que a fazia passar longos períodos a escrevinhar num livro, entre queixas de náuseas e desfalecimentos suspirantes. Baixa e rija como um potro, de cabelo castanho a emoldurar-lhe uma cara riscada a giz de tão agudamente geométrica, Soror Flâmula não era nada dada a delíquios de místicas ardentes, que por vezes acometiam as outras freiras. Por isso a suas maleitas foram alvo de grande perturbação entre as noviças, que lhe iam espreitando as formas arredondadas debaixo do burel impiedoso.
Soror Flâmula apresentava todos os sinais de uma prenhez gemelar, peitos inchados, ventre lascivamente empinado sob os panos alvos da virginal farda monacal, apetites insaciáveis e súbitas vertigens durante as vésperas. Chamado de urgência ao convento, o seu director espiritual exigira que a madre abadessa lhe explorasse o ventre com os dedos, num exame ginecológico que comprovara o milagre. Soror Flâmula, vermelha de vergonha ao ser submetida a tão aviltante prova, gritara em voz alta o que ninguém queria acreditar, estava intacta como quando tinha vindo ao mundo, intacta como a Virgem Maria quando concebeu. A abadessa tivera de concordar, Soror flâmula não tinha um hímen rompido, a acreditar nos seus dedos experientes, apesar da miraculosa gravidez, do edema das pernas, da vulva violácea a adivinhar partos difíceis.
Os fetos mexiam-se no ventre enquanto Soror Flãmula escrevia um livro noite fora, recados ao inevitável arcanjoque a emprenhara sem que houvesse da sua parte o mais erótico arroubo místico, ou o mais dissimulado orgasmo. Parecia-lhe de uma crueldade inumana, ver-se assim hediondamente prenha, com toda os desconfortos da gravidez e os horrores do parto à espreita, sem usufruir uma única das benesses paralelas de ter um corpo de mulher - um corpo outrora confiável.

E não esperava clemência. Se nem mesmo a Virgem Maria fora poupada à tortura de parir com dor, embora logo a seguir um milagre providencial lhe recompusesse um hímen trespassado – parece que Deus se preocupava mais com o hímen intacto de Maria do que com o sofrimento da mãe adolescente do seu filho amado - que poderia esperar Flâmula senão um parto agonizante ?

segunda-feira, junho 16, 2008

Notas compradas

È recorrente. Ultimamente os meus amigos com filhos no ensino público, de que sempre defenderam a excelência, quando chegam aos decisivos 11º ou 12º é um corrupio a inscrever os meninos nos colégios privados católicos. Porquê? Por causa dos milagres. Por exemplo, alunos que no ensino público têm regularmente notas de 13, 14 ou 15 valores a Educação Física transformam-se de repente em atletas de alta competição, com notas regulares de 19 e 20 valores. Um verdadeiro milagre. O mesmo vale para outras disciplinas igualmente difíceis, como Àrea de Projecto, em que a profusão de elegantes 20 ficam sempre bem na pauta de qualquer colégio católico, mas se torna bastante mais improvável na pauta de uma Escola Secundária do ensino público. O mais ridículo é que todas estas “disciplinas” contam em pé de igualdade com as outras, sem qualquer ponderação, para a média final de acesso ao ensino superior.
Mas os milagres não se ficam por aqui e estendem-se metodicamente à generalidade das disciplinas mais essenciais. Há um súbito acréscimo do QI dos estudantes, com a correspondente elevação súbita das avaliações finais. O acréscimo não deve ser muito estável, nada que corresponda ás notas das mesmas disciplinas nos exames nacionais, mas ideia é essa mesmo. Subir o mais possível as nota de frequência, em turmas sobrelotadas e bem pagas por cabeça.

Quem pode compra.

Domingo


Domingo

Sábado

Tenho dias muito felizes. Estou sentada à beira rio, rodeada dos meus filhos que brincam na relva, enquanto o barco de afasta. Lá dentro o mais velho faz-me caretas enquanto o pai finge que dorme a sesta. Descobrimos uma família de patos entre os canaviais, os patinhos recém nascidos a seguirem em perfeita fila atrás da mãe – olha, mãe, parecemos nós - andámos de bicicleta até cair para o lado e, entre amuos , uma ou outra birra, duas quedas, duas travessias de ponte, chegámos ao fim do dia.
Às vezes sinto que já estive em muitos lugares, mas os lugares do amor apaixonado e da maternidade fruída são os mais próximos do infinito.

sábado, junho 14, 2008

POrque sou feminista.

Todas as semanas são mortas em Portugal pelo menos duas mulheres vítimas da violência extrema do seu conjuge.
Tudo isto se passa num país de brandos costues, como se amorte das mulheres ás mãos dos seus extremosos maridos ou namorados fosse uma coisa mais ou menos normal e tolerável.
Nenhuma organização religiosa, nenhuma seita, nenhum movimento, nenhum partido político parece seriamente preocupado com esta situação extrema.

Um homem, de 46 anos, esfaqueou até à morte, na Rinchoa (Sintra), a mulher, de 41, defronte do filho menor. A vítima tinha pedido o divórcio há cerca de um mês, mas o marido não aceitou e acabou por matá-la.
Gonçalo, de apenas 10 anos de idade, assistiu à morte da mãe, infligida pelo próprio pai que, com uma faca, a golpeou várias vezes no tórax, nas costas e no peito. A criança apercebeu-se da violência da discussão entre os progenitores e os gritos da mãe levaram-no a chamar o irmão mais velho, que dormia num dos quartos do 6º direito, do nº 28 da Rua Casal da Serra, na Rinchoa. Quando chegaram à cozinha, era tarde demais e a mãe já se encontrava ensanguentada no chãoUm homem, de 46 anos, esfaqueou até à morte, na Rinchoa (Sintra), a mulher, de 41, defronte do filho menor. A vítima tinha pedido o divórcio há cerca de um mês, mas o marido não aceitou e acabou por matá-la.
Gonçalo, de apenas 10 anos de idade, assistiu à morte da mãe, infligida pelo próprio pai que, com uma faca, a golpeou várias vezes no tórax, nas costas e no peito. A criança apercebeu-se da violência da discussão entre os progenitores e os gritos da mãe levaram-no a chamar o irmão mais velho, que dormia num dos quartos do 6º direito, do nº 28 da Rua Casal da Serra, na Rinchoa. Quando chegaram à cozinha, era tarde demais e a mãe já se encontrava ensanguentada no chão.

sexta-feira, junho 13, 2008

Interobjectividade

"Cada Pessoa é formada por múltiplas assinaturas, com histórias e indiscrições indistintas, que obrigam a escolhas, por vezes dolorosas.
O Eu , a identidade, é algo que circula entre vários cenários e figurações.
Mais do que falar em intersubjectividades ou interacções face a af ace, deevria falar-se de interferências, acções materiais heterogéneas, em dobras, temporalidades diversas e em interobjectividade".

Latour, 1994

Ernesto

Entrei no bar como um náufrago que se atira para a primeira duna que encontra. Estou exausto. Pedi qualquer coisa para anestesiar a dor, dose dupla. Estou só e assim quero ficar, cinco minutos, cinco golos de whisky, cinco madrugadas. Não tão só como ele está hoje, depois que o deixei semidaormecido na cama do hospital."Estou preparado apara uma grande tragédia, mas não para uma tragédia definitiva" disse-me ele, depois do TAC. Sei o resultado TAC mas não lho disse, ninguém lhe disse, combinámos sem palavras que lhe daríamos uma última noite de angustiada esperança. (Ate amanhã.)
Antes uma angustiada esperança que uma definitiva certeza de metástases disseminadas.
Estou só, quero ficar só, mais um golo, mais um minuto, mais uma madrugada.
Hoje, o peso do mundo acaba no meu copo.

Mensagem

Miguel Torga escreveu a felicidade do poeta que escreve para ninguém.

Não há dúvida que a felicidade da poesia é escrever para si mesmo – escrever-se por dentro.

domingo, junho 08, 2008

halisha


Halisha ainda sentia o frémito dos tambores nas pernas, o formigueiro dos bailarinos a contorcionar-lhe os músculos do ventre. Os saltos altos escorregavam na calçada lodosa, no entanto, para halisha, a ruela junto ao cais era ainda a pista de dança onde passara as últimas duas horas, num cocktail de luzes e drogas psicadélicas. Estava tão inebriada da musicalidade dos próprios passos que rodopiou duas vezes antes de partir o salto, mesmo ao pé de uma caixa de electricidade. Em desiquilíbrio, Halisha apoiou o braço esquerdo no quadrado metálico como se fosse o ombro de um par desajeitado e aí poisou o livro que trazia na mão como um adereço de dança inútil.

Encontros

Debaixo de um sol radioso, resolvi ler o Diário de Ethy, cujas linhas já tinha entrelido por aqui e ali. Um judia nazi morta num campo de concentração. Nada da escrita pueril de Anne Frank, mas uma escrita de um misticismo intenso e profundo próximo da poesia, uma busca obscura da paz num mundo onde o horror do nazismo estende as suas sombras. Ethy percorre esse estranho mundo com uma interioridade cintilante. Entre um aborto autoinduzido, um interrogatório na Gestapo, paixões, passando pela morte que adivinha inevitável, porque é judia, é um percurso interior e absolutamente extraordinário, o desta mulher de 27 anos que descobre a presença do indizível e o sentido da sua vida.

Morreu em Auschwitz, a 30 de Novembro de 1943 com vinte e nove anos.


O meu problema é que se deixo a minha sensibilidade aos outros aflorar livremente
( é isso a caridade?) fico exposta, em carne viva, face ao sofrimento alheio, dilacerada com as dores de estranhos que faço minhas, como se a capacidade de penetrar no seu mundo fosse tão natural como respirar.
Em dias assim a violência do mundo parece-me tão insuportável como a sua beleza.

Feminismo

Uma mulher, de 31 anos, foi espancada até à morte e fechada numa loja térrea, anteontem, ao final da tarde, em Póvoa da Pégada, Carregal do Sal, alegadamente por um camionista com quem ela não queria namorar.
Lobélia Maria Fernandes Marques andava, anteontem, a arrumar lenha, na loja/adega que lhe estava confiada, em Póvoa da Pégada, Carregal do Sal, quando foi espancada com violência na cabeça e no rosto. Até ao último suspiro. O principal suspeito da agressão é um homem divorciado, camionista, que a conheceu há algumas semanas e insistia em manter uma relação que a vítima não desejava

Visita domiciliária

Tropecei no linóleo da entrada, um linóleo em tons grená, sobre a cadeira abandonada num canto amontoam-se dois casacos e um gorro lilás de criança, à esquerda desemboquei na cozinha onde o cheiro a fritos do jantar da vérpera me atingiu antes mesmo de abrir a porta.

Numa mesa branca desenha-se a luz escorrida das janelas, maçãs verdes esperam num prato a gula d ealguém, quatro pratos empilhados na pressa de saír de casa, alguém que come e sai, como se casa onde vive fosse uma espécie de pensão de duas estrelas, no quarto amontoam-se livros, desenhos a aguarela, um perfume sem marca, alguém se esqueceu de apagar a luz do candeeiro, metalizado, promoção do LIDL, há uma urgência na forma como os cobertores foram puxados, como se , apesar de tudo, quem habita o quarto quisesse deixar uma pouco de ordem no labirinto, sobre a cómoda uma fotografia de família, uma criança de gorro lilás sorri para a objectiva, um riso inteiro de covinhas felizes.

Outras escritas

Dáme um prazer enorme ler a ana de amsterdam. É uma escrita muito clara, cheia de pormenores quotidianos e de reflexões pessoais com as quais me identifico tão profundamente como se a ana fosse uma amiga íntima , quando é alguém que nunca vi e que não conheço.
O facto dela estra grávida talvez explique parte desta identificação.

Prayer

"Ontem à noite, pouco antes de me ir deitar, dei por mim, de repente, ajoelhada na alcatifa, no meio desta grande sala, entre as cadeiras de metal. Assim. Sem mais nem menos. Puxada para o chão por algo mais forte do que eu.

Faz tempo, tinha dito de mim para mim: "Vou ver se consigo ajoelhar-me". Tinha ainda muita vergonha desse gesto tão íntimo como os gestos do amor, todos gestos de que ninguém consegue falar. A não ser um poeta (...) "

Etty Hillesum

sábado, junho 07, 2008


Futebolãndia

Quem está hoje de urgência ou prevenção já sabe. Durante a hora do jogo de futebol,os serviços vão estar vazios e vamos andar pelos corredores a olhar uns para os outros e para os doentes que ficaram do turno da manhã.
Em compensação, os doentes que entrarem entretanto vão ser verdadeiras urgências, daqueles casos de vida ou morte ou incidentes agudos que não podem esperar até ao intervalo. Poucos mas verdadeiros.
O que é ainda mais estranho é que este padrão acontece sempre em ocasiões como jogos de futebol ou outros e eventos "igualmente importantes". Fica entre aspas, porque continuo a pasmar como é que um país inteiro para e fica literalmente suspenso – até nos acidentes graves e nos incidentes críticos – por causa de um jogo de futebol.
Sabemos também que, mal acabe o jogo, vai haver rum pico súbito de afluência de pessoas com queixas várias, acidentes, intoxicações, crianças magoadas porque os pais estavam a ver a bola.
Tudo isto não é pontual – é cíclico e recorrente e permite-nos fazer uma reflexão sobre os padrões de utilização dos serviços de urgência da nossa população.

Até lá, horas e horas de directos, semi-directos e pseudo-notícias sobre trivialidades, de tal maneira que Portugal, o mundo, os problemas, as notícias, ficam soterradas a um canto do delírio patriótico com o futebol.

quarta-feira, junho 04, 2008

Por aprendizagem significativa entendo uma aprendizagem que é mais do que uma acumulação de factos. É uma aprendizagem que provoca uma modificação, quer seja no comportamento do indivíduo, quer na orientação futura que escolhe ou nas suas atitudes e personalidade.
É uma aprendizagem penetrante, integradora, que não se limita a um aumento de conhecimentos, mas que penetra profundamente todas as parcelas da sua existência."
Rogers, i Tornar-se Pessoa, 1988.

Confissões à beira de casa


Aqui, diante de mim,
Eu, pecador, me confesso
De ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
Que vão em leme da nau
Nesta deriva em que vou.
Me confesso Possesso
Das virtudes teologais
,
Que são três,
E dos pecados mortais
Que são sete,
Quando a terra não repete
Que são mais.
Me confesso o dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas
E das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
Andanças do mesmo todo.
Me confesso de ser charco
E luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
Que atira setas acima
E abaixo da minha altura.
Me confesso de ser tudo
Que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.
Me confesso de ser Homem.
De ser o anjo caído
Do tal céu que Deus governa;
De ser o monstro saído
Do buraco mais fundo da caverna.
Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
Para dizer que sou eu
Aqui, diante de mim!
Miguel Torga