sexta-feira, outubro 20, 2006

É possível?


É possível (...) que não se tenha visto, conhecido e dito nada de real e importante?
É possível que se tenha tido milénios para olhar, reflectir e anotar
e que se tenha deixado passar os milénios como uma pausa escolar, durante a qual se come fatias de pão com manteiga e uma maçã?
Sim, é possível.
É possível que, apesar das investigações e dos progressos, apesar da cultura, da religião e da filosofia, se tenha ficado na superfície da vida?
É possível que até se tenha coberto essa superfície - que, apesar de tudo, seria qualquer coisa - com um pano incrivelmente aborrecido, de tal modo que se assemelhe aos móveis da sala durante as férias de Verão?
Sim, é possível.

(...) É possível que nada se saiba das raparigas que, no entanto, vivem?
É possível que se diga «as mulheres», «as crianças», «os rapazes» e não se faça a mínima ideia (apesar de toda a cultura não se faça a mínima ideia) de que há muito que estas palavras não têm plural, mas apenas inúmeros singulares? Sim, é possível. "

Rainer Maria Rilke, in 'As Anotações de Malte Lauridis Brigge'

1 comentário:

Vítor Mácula disse...

É aliás muito provável... ;)

O último parágrafo é duma acutilância extrema. Já o neurótico do Schopenhauer dizia que no humano, o indivíduo é superior à espécie. Ou seja, o que nos define por fim, é a nossa estória pessoal, e não a do género humano, que apenas a permite. Isto não deve ser bem assim :P mas lá que desvela qualquer coisa, lá isso... E o famigerado conceito de pessoa que os católicos tanto propalam devia passar mais vezes por esta consciência. Se o que me define por fim é a liberdade pessoal, esta deve ser permitida e alentada, com os riscos que isso comporta. Os riscos da massificação geral são menos assustadores no imediato mas...

Beijos, bom dia.

PS: E depois, escreve bem como o raio, o Rilke ;)