terça-feira, outubro 17, 2006

Bateu á porta, num intervalo das aulas da tarde. Por norma, o meu gabinete está sempre disponível para os alunos, mesmo fora das horas de atendimento. Alegou uma dificuldade na bibliografia.
Mas depois, desasbafou que queria falar comigo por causa de uma matéria da última aula. SEntou-se nervosamente , começou a falar. O que me disse aquela jovem mulher de olhos sereníssimos, durante mais de duas horas, deixou-me a alma a sangrar.
Pensa-se muitas vezes que a
violência contra as mulheres só sucede em famílias disfuncionais, classes baixas, pessoas com dificuldades económicas. Mas uma jovem pode ser alvo das brutalidades mais indizívesi se tiver o azar ou o acaso de começar a namorar muito cedo com um indivíduo perturbado. A história desta menina era isso mesmo - um namoro precoce com um indivíduo mais velho, de boas famílias e um certo contexto social que apoiava o envolvimento.
E eis uma menina bem, com uma família amorosa e estável a passar em silêncio pelas barbaridades mais abjectas que envolviam a agressão física e s exual, às mão do namorado bem comportadinho ...
Arrastou a situação durante dois anos até que um dia se apercebeu que estava grávida. E aí o horror tomou conta dela, num súbito despertar. SE ele descobrisse, se a família descobrisse , era obrigada a casar por pressão social. Definitivamente ficaria presa àquele violentador o resto da vida.
E de repente , contou-me ela, isso deu-lhe forças inimagináveis. O horror que sentia pela gravidez indesejada era tanta que pensou seriamente no suicídio. E subitamente, no meio daquele abismo descobriu nela mesma uma vontade radical de sobreviver e de se libertar.
SEm ajuda de ninguém nem pais, nem namorado, recorreu ao aborto clandestino. Pediu dinheiro emprestado a uma amorosa avó que pensava que estava a financiar uma compra mais exuberante. Abortou sozinha, com uma colega de turma que a acompanhou de taxi.
Nunca se sentiu tão liberta como nesse dia, confidenciou-me.
Tão segura que nunca, mas mesmo nunca permitiria que ninguém mais lhe fizesse mal.
Terminou com o namorado por telefone, ante o escãndalo dos pais por renunciar um rapaz tão educado e com um futuro invejável.
Está convicta duma coisa - se ele sonhasse sequer com aquela gravidez incipiente haveria de persegui-la sem descanso.
Felizmente que nesse ano entrou para a faculdade, mudou de cidade, de amigos.
Ele desinteressou-se subitamente por ela, como um brinquedo gasto. Ela agradeceu.
Tem agora um namorado doce a atento que a ajudou a reconstruir-se por dentro.
"Ainda bem que abortei," disse-me ela. "SE não fosse isso, não teria sobrevivido".

2 comentários:

Anónimo disse...

Matei para viver eu!

BLUESMILE disse...

Nesse caso, aplica-se o conceito de "legítima defesa",
que é uma causa de exclusão da ilicitude do acto.

Em suma, anónimo, se mataste para não morreres, não podes ser condenado a pena de prisão pelo Direito Penal.

Já agora, o crime de homicídio tem uma moldura penal até 25 anos.