quarta-feira, dezembro 04, 2013

Sessão de Quimioterapia IPO



Das janelas da sala, como escotilhas, vêem-se as árvores que deslizam à medida que a manhã flui. Volitivos pássaros afligem-se nos rebordos das coisas todas. Maria cruza os braços com uma energia lânguida muito própria, num misto de enfado e determinação. A primeira coisa a envelhecer numa mulher é a boca, as comissuras dos lábios vão descaindo inexoravelmente num rictus próprio da permanente zanga com o mundo. E assim, tão de repente como o navegar do dia, as mulheres transformam-se em vincos, esgares pontuais, o aguçar dos queixos. 
Das janelas da sala como num aquário, a paisagem golfeja p´ra dentro.

Uma ligeira dúvida vai corroendo o olhar. Oculta-se nos insterstícios dos plátanos. Acoita-se nas comportas do vento. Quanto tempo mais teremos para fazer render os nossos limitados rostos? Quantos dias nos sobrarão para mudar o mundo? Para todos os efeitos, a primeira coisa que as mulheres perdem é a doçura da boca, a gentileza dos lábios entreabertos, a cintilação da voracidade. As coisas funcionam assim – aquários dentro de aquários, a arquitectura das ruas, a nudez endérmica. Das janelas da sala, Maria debruça-se sobre o mundo sem história, que se vai narrando ao longo dos seus olhos. Não sabe se a velhice que lhe vai caindo sobre a cara é inevitável. Se a fome ainda vai servir para abocanhar.

Maria enfia mais dois anéis. Gosta de anéis coruscantes que lhe alongam as mãos e engordam os dedos. Um anel novo pode envolve-la numa outra percepção da realidade quando o olhar lhe descai para a pedra do anelar direito. O mundo fica mais organizado, de uma serenidade transparente, como se uma explosão silenciosa disciplinasse as coisas. O corpo de Maria está amestrado para longas horas de silenciosa complexidade, quando se senta, horas a fio, a poucos passos da janela-escotilha por onde as árvores passam a meter na veia a dose de quimio. A proximidade do verde trazido pelo vendaval de novembro, os anéis nacarados, a repetição incólume dos dias.
 A delicadeza esfíngica dos pássaros que finalmente entram na sala, ocupam os móveis, andam e em contracurvas sob os tetos, fazem ensaios de voos sincopados, ora magistrais ora inovadores. E neste disciplinar do corpo, neste entrecruzar dos braços de maria, a esperança ainda escorre, soro abaixo.

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