sábado, dezembro 14, 2013

O Joaquim Doido


Quando entrei pelas portas de madeira da casa, três vezes a minha altura, estava longe de imaginar que estava a transpor o portal para uma outra qualquer dimensão digna das viagens do tempo do Dr Who numa cabina telefónica.
O jardim da entrada, com azulejos do séc. XVII e a fonte a fingir, faziam a prisão  parecer um pequeno palacete de burgueses entediados, mas eu vi logo que a sereia da fonte tinha a boca retorcida, um bocado de pedra fracturada no sítio da cauda e isso pareceu-me um presságio de mau olhado.
Por essa altura ainda não tinha a certeza mas logo aprendi – o fim do mundo começava ali.
Agarrei-me ao telemóvel como alguém que se afoga se agarra a uma tábua flutuante por ali a passar. As pessoas eram estranhamente afáveis para mim, enquanto me pesavam, me mediam, me examinavam  a boca e a língua,  me atavam no braço uma braçadeira que inchava ao som de apitos, eu de costas para a verdura da luz, prestes a atirar-me de cabeça para o nada, agarrado ao telemóvel-bicho-de-estimação, uns usam medalhas e amuletos, eu uso sempre o telemóvel , as árvores do jardim tão amarelas que metem medo, a luz inacreditável a bater no teto do meu coração, um cão labrador a trotear no parque ao longe, sem qualquer açaime ou rigor, a rapariga de bata branca a espreitar-me por detrás do olhar castanho, olhos doces, pensei, pode um carcereiro ter olhos doces? as mulheres daquela idade são tão iguais, as prisões também, só quando me tentaram tirar o telemóvel é que reagi, deu-me um súbito ataque de náufrago desesperado, consciente (escreveram depois que entrei em agitação psicomotora), deu-me um ataque, mordi, esperneei esbracejei, esmurrei, dei pontapés,  quatro gajos de farda vindos do nada caíram sobre mim como num assalto de rugby, seguraram-me à força, arrastaram-me no chão - enquanto pude reagi, mordia, urrava, agarrava-me às portas e ao chão, raspava as unhas nas paredes, acho que mordi um gajo por cima da farda até à carne, o sabor do sangue encheu-me a boca. Arrancaram-me a roupa e o telemóvel ao mesmo tempo, puxaram-me o cabelos até estar  completamente imobilizado,   acho que levei um ou dois murros, sem saber como já estava completamente amarrado,  deitado na cama, atado de pés e mãos,  só baba e sangue a escorrer-me pelo queixo  abaixo, a sereia da fonte com a boca toda retorcida a pairar aos rodopios à  minha volta, eu gritava que me tinham envenenado, que me iam matar, as árvores tão amarelas de meter medo, enfiaram-me um tubo no braço esquerdo enquanto eu urrava, senti a agulha na perna direita, a seringa cheia, o líquido espesso a adentrar-me nos  músculos contraídos, um ferro de touro nas touradas, e eu era o touro, bufava, atado, picado, qual telemóvel qual quê, a rapariga de bata branca afinal sem qualquer doçura nos olhos,   e eu ali, só pele e ossos, quase nu, as peles da barriga a balançarem, ninguém  sabe do quanto a loucura pode ser definitiva, sem qualquer epitáfio que mereça festejar.  

E foi assim que me morri no dia catorze de dezembro de 2013, o ano de todos os bichos, o ano de todas as folhas amarelas de meter medo, o ano de todos os cães sem açaime, o ano em que , verdadeiramente, comecei a viver.

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