quinta-feira, dezembro 05, 2013

O sonho da Miquelina com o defunto marido



Hoje sonhei com um homem. Um homem apaixonado. No meu sonho, a boca dele desesperava de fome. Por mim. O rosto sugava-me e eu sentia-me empurrada em rodopios para aquela boca, uma sofreguidão de entrega.A fome dele por mim era a minha fome por ele. O sonho era sobretudo de palavras a sangrar. No sonho, o meu amado queria dizer-me coisas e não conseguia, as palavras do silêncio queimavam como luzes, balões, quase, quase-orgasmos, no escuro, a voragem, uma vertigem. A fome toda do mundo não chega para explicar palavras de amor por dizer. Em vez de falar ele atirava-me cartas para o colo, folhas de papel escritas, cartas antigas, daquelas que se mandavam por correio com linhas azuis para escrever por cima, nunca te cheguei a mandar a carta, repetia ele, e eu pasmada, mas qual carta?, nunca te disse quanto te amava , repetia, isso mais o olhar, o olhar onde cabia a fome toda do mundo, aquele olhar do encontro depois do abismo.
Esta noite sonhei como o meu  morto, e por isso sei. Todo o amor é infinito, nenhum amor acaba, um homem que ame uma mulher nunca a deixa, não pode, mesmo que queira, não consegue. Persegue-a em sonhos,  penetra-lhe a pele, viola-a de noite. No meu sonho, nem o cheguei a beijar. Já lhe tinha dado os beijos todos, o amor era mais antigo do que o tempo, do que a morte, no meu sonho ele falava sem palavras e eu entendia-as todas, sabia daquela fome, de mim, da busca, da voragem , não posso mas sei, estou longe, mas sei, o amor não acaba nunca, o amor cabe na saliva da alma, o amor das palavras que nunca foram, das possibilidades fechadas e por isso mesmo abertas, dos filhos paridos e dos que não foram paridos, dos sonhos mal e bem sonhados, tão límpidos e vividos como o fluxo subterrâneo que nos alimenta os dias.

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