Hoje sonhei com um homem. Um homem apaixonado. No meu sonho, a boca dele
desesperava de fome. Por mim. O rosto sugava-me e eu sentia-me empurrada em
rodopios para aquela boca, uma sofreguidão de entrega.A
fome dele por mim era a minha fome por ele. O sonho era sobretudo de palavras
a sangrar. No sonho, o meu amado queria dizer-me coisas e não conseguia, as
palavras do silêncio queimavam como luzes, balões, quase, quase-orgasmos, no
escuro, a voragem, uma vertigem. A fome toda do mundo não chega para explicar
palavras de amor por dizer. Em vez de falar ele atirava-me cartas para o colo,
folhas de papel escritas, cartas antigas, daquelas que se mandavam por correio
com linhas azuis para escrever por cima, nunca
te cheguei a mandar a carta, repetia ele, e eu pasmada, mas qual carta?, nunca te disse quanto te amava , repetia, isso mais o olhar, o
olhar onde cabia a fome toda do mundo, aquele olhar do encontro depois do
abismo.
Esta noite sonhei como o meu morto, e por isso sei. Todo o amor é
infinito, nenhum amor acaba, um homem que ame uma mulher nunca a deixa, não
pode, mesmo que queira, não consegue. Persegue-a em sonhos, penetra-lhe a pele, viola-a de noite. No meu
sonho, nem o cheguei a beijar. Já lhe tinha dado os beijos todos, o amor era
mais antigo do que o tempo, do que a morte, no meu sonho ele falava sem
palavras e eu entendia-as todas, sabia daquela fome, de mim, da busca, da voragem , não posso mas sei, estou longe, mas sei, o amor
não acaba nunca, o amor cabe na saliva da alma, o amor das palavras que nunca
foram, das possibilidades fechadas e por isso mesmo abertas, dos filhos paridos
e dos que não foram paridos, dos sonhos mal e bem sonhados, tão límpidos e
vividos como o fluxo subterrâneo que nos alimenta os dias.
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