Quando
entrei pelas portas de madeira da casa, três vezes a minha altura, estava longe
de imaginar que estava a transpor o portal para uma outra qualquer dimensão
digna das viagens do tempo do Dr Who numa cabina telefónica.
O
jardim da entrada, com azulejos do séc. XVII e a fonte a fingir, faziam a
prisão parecer um pequeno palacete de
burgueses entediados, mas eu vi logo que a sereia da fonte tinha a boca
retorcida, um bocado de pedra fracturada no sítio da cauda e isso pareceu-me um
presságio de mau olhado.
Por
essa altura ainda não tinha a certeza mas logo aprendi – o fim do mundo
começava ali.
Agarrei-me
ao telemóvel como alguém que se afoga se agarra a uma tábua flutuante por ali a
passar. As pessoas eram estranhamente afáveis para mim, enquanto me pesavam, me
mediam, me examinavam a boca e a língua,
me atavam no braço uma braçadeira que inchava
ao som de apitos, eu de costas para a verdura da luz, prestes a atirar-me de
cabeça para o nada, agarrado ao telemóvel-bicho-de-estimação, uns usam medalhas
e amuletos, eu uso sempre o telemóvel , as árvores do jardim tão amarelas que
metem medo, a luz inacreditável a bater no teto do meu coração, um cão labrador
a trotear no parque ao longe, sem qualquer açaime ou rigor, a rapariga de bata
branca a espreitar-me por detrás do olhar castanho, olhos doces, pensei, pode um
carcereiro ter olhos doces? as mulheres daquela idade são tão iguais, as prisões
também, só quando me tentaram tirar o telemóvel é que reagi, deu-me um súbito
ataque de náufrago desesperado, consciente (escreveram depois que entrei em
agitação psicomotora), deu-me um ataque, mordi, esperneei esbracejei, esmurrei,
dei pontapés, quatro gajos de farda
vindos do nada caíram sobre mim como num assalto de rugby, seguraram-me à força, arrastaram-me no chão - enquanto pude reagi, mordia, urrava,
agarrava-me às portas e ao chão, raspava as unhas nas paredes, acho que mordi
um gajo por cima da farda até à carne, o sabor do sangue encheu-me a boca. Arrancaram-me
a roupa e o telemóvel ao mesmo tempo, puxaram-me o cabelos até estar completamente imobilizado, acho que levei um ou dois murros, sem saber como já estava completamente amarrado, deitado na cama, atado de pés e mãos, só baba e sangue a escorrer-me pelo queixo abaixo, a sereia da fonte com a boca toda retorcida
a pairar aos rodopios à minha volta, eu
gritava que me tinham envenenado, que me iam matar, as árvores tão amarelas de
meter medo, enfiaram-me um tubo no braço esquerdo enquanto eu urrava, senti a
agulha na perna direita, a seringa cheia, o líquido espesso a adentrar-me nos músculos contraídos, um ferro de touro nas
touradas, e eu era o touro, bufava, atado, picado, qual telemóvel qual quê, a rapariga de bata branca afinal sem
qualquer doçura nos olhos, e eu ali, só
pele e ossos, quase nu, as peles da barriga a balançarem, ninguém sabe do quanto a loucura pode ser definitiva,
sem qualquer epitáfio que mereça festejar.
E
foi assim que me morri no dia catorze de dezembro de 2013, o ano de todos os
bichos, o ano de todas as folhas amarelas de meter medo, o ano de todos os cães sem açaime, o ano em que , verdadeiramente, comecei a viver.