Das janelas da sala, como
escotilhas, veem-se as árvores
que deslizam à
medida que a manhã
flui. Os volitivos pássaros
afligem-se nos rebordos das coisas todas. Maria cruza os braços com uma energia
lânguida muito
própria, num
misto de enfado e determinação.
A primeira coisa a envelhecer numa mulher é a boca, as comissuras dos lábios vão descaindo
inexoravelmente num rictus próprio
da permanente zanga com o mundo. E assim, tão de repente como o navegar do dia,
as mulheres transformam-se em vincos, esgares pontuais, o aguçar dos
queixos. Das janelas da sala como num aquário, a paisagem golfeja p´ra
dentro.Uma ligeira dúvida vai
corroendo o olhar. Oculta-se nos insterstícios dos plátanos. Acoita-se
nas comportas do vento. Quanto tempo mais
teremos para fazer render os nossos limitados rostos? Quantos dias nos sobrarão para mudar o mundo?
Para todos os efeitos, a primeira coisa que as mulheres perdem é a doçura da boca,
a gentileza dos lábios
entreabertos, a cintilação
da voracidade. As coisas funcionam assim – aquários dentro de aquários, a
arquitectura das ruas, a nudez endérmica. Das janelas da sala, Maria
debruça-se sobre o
mundo sem história,
que se vai narrando ao longo dos seus olhos. Não sabe se a velhice que lhe vai
caindo sobre a cara é
inevitável. Se a fome
virgem ainda vai servir para abocanhar.
Maria enfia mais dois anéis. Gosta de
anéis
coruscantes que lhe alongam as mãos e engordam os dedos. Um anel novo
pode envolve-la numa outra percepção da realidade quando o olhar lhe
descai para as pedra nacaradas . O mundo fica mais organizado,
de uma serenidade transparente, como se uma explosão silenciosa
disciplinasse as coisas. O corpo de Maria está amestrado para longas horas de
silenciosa complexidade, quando se senta, horas a fio, a poucos passos da janela-escotilha
por onde as árvores
passam. A proximidade do verde trazido pelo vendaval de novembro, os anéis nacarados,
a repetição incólume dos
dias, a delicadeza esfíngica
dos pássaros que
finalmente entram na sala, ocupam os móveis, andam em contracurvas sob
os tetos, fazem ensaios de voos sincopados, ora magistrais ora inovadores.
E neste
disciplinar do corpo, neste entrecruzar dos braços de Maria, a esperança, ainda.
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