quinta-feira, abril 19, 2007

Hoje á tarde. Unidade de Psiquiatria.

Doente para um aluno:

- Não fales mais comigo. Não és real.

O Delírio nihilista, embora raro, é uma forma fascinante de alteração de pensamento que se caracteriza por uma angustiante e persistente negação da realidade – resultante da convicção delirante de que o mundo, as outras pessoas ou a própria pessoa não existem.

A crença de que a realidade resulta de um relativismo construído ( com base na percepção sensorial, na conceptualização pura ou na representação imagética individualmente construída) colide com a ideia de que a realidade existe de per si, independentemente da forma como é apreendida e reconfigurada.

De certa forma, a ideia de que interpretação da realidade é igualmente válida seja qual for a forma da sua apreensão /reconstrução simbólica, equiparando-se num mesmo nível de validade , a experiência mística o delírio ou a experiência científica, aproxima-se do nihilismo.

Por isso a sistemática negação da validade do conhecimento científico como forma válida de interpretação inteligível do real tem muito de esquizofrenizante.

6 comentários:

Anónimo disse...

É fascinante como a filosofia, querendo-se ou não, anda por todo o lado, nas linhas e nas entrelinhas.

Aqui poderíamos levantar muitas questões filosóficas pertinentes. Por exemplo, existir é o mesmo que ser real? Mas o que é a realidade, essa realidade de que continuamente se fala?

As vozes que um esquizofrénico ouve são reais ou não?

Antepenúltimo parágrafo: idealismo «versus» realismo. É possível defender cabalmente alguma das duas posições?

Penúltimo parágrafo: as diferentes interpretações da realidade... Como podemos estabelecer critérios de validade das diferentes interpretações? Onde está o cânon último?

Último parágrafo: a negação e a esquizofrenização. Suponhamos que um criacionista dizia: a sobreposição do conhecimento científico à literalidade da Bíblia é um pressuposto diabólico. Como sabemos que só uma das afirmações está correcta?

Alef

BLUESMILE disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
BLUESMILE disse...

As vozes não são reais.

O que é real, é a alteração da percepção e a perturbação bioquímica cerebral que a origina.
Tão real que num indivíduo que sofre alucinações auditivas apresenta zonas cerebrais específicas activadas.

"Como podemos estabelecer critérios de validade das diferentes interpretações?"
Há várias possibilidades.
Mas a mais adequada basei-se numa visão materialista da realidade.
Provavelmente Descartes sofria de alucinações. O seu discurso do método tenta responder a este delírio nihilista - o que é real, o que não é? Podemos confiar na percepção sensorial?

Uma coisa é certa -
O aluno , tal como o doente , são reais. ( de Res).
São seres vivos, com existência, submetidos ás leis inexoráveis da física e da biologia.

Vítor Mácula disse...

Olá, bluesmile.


Penso que é preciso algum cuidado nas equiparações ou analogias entre especulações e actividades filosóficas, artísticas ou religiosas, e a aferição de perturbações mentais. Que se queira definir e orientar a sociedade e o indivíduo nela a partir da sua aferição biológica, é até quanto a mim uma perigosa tendência de certo cientismo contemporâneo aqui no burgo ocidental. Não há nada de mais perigoso psicológica e politicamente do que as unilateralidades de sentido. Corresponde a “Quem não tiver uma imagem do mundo e de si “X”, que é a correcta, indicia uma patologia mental ou social”. Nem Derrida nem Deleuze, nem Joseph Beuys ou Herberto Hélder, nem mestrte Eckhart ou Karl Barth foram doentes mentais (ou, se preferires, a sê-lo, não é aí nem daí que está o seu sentido e horizonte de acção). Relevá-los para o foro clínico é puro despotismo político no seu sentido mais profundo – isto é, epistemológico.

Não se trata de pôr no mesmo nível de validade as áreas da existência humana; e só haveria “esquizofrenia! Se a complementaridade fosse substituída pela mútua exclusão.

Quanto ao nihilismo, entrou na nossa cultura via detecção nietzschiana do abandono de quesito pelo sentido da vida na modernidade ocidental (que ele precisamente pretendia superar a partir dum trabalho a fazer na profundidade da vontade, ao contrário do que pensam dele os leitores de jornais e revistas: “Antes uma vontade de nada, do que um nada de vontade” – é o começo de tal superação que culmina no supra-humano oposto ao último homem). Seja como for, convém não confundir nihilismo ou Nietzsche, com cepticismo, que nem sequer é a “validade igual” para todos os discursos e fluxos de representações, mas precisamente o contrário – a sua impossibilidade de apodigticidade, isto é, no limite, a possibilidade de não-validade de todo e qualquer ponto de vista e vida, ou tese e enunciados… O último cromo desta ilustre estirpe é, que eu saiba, o infrequentável Cioran ;)

Quanto à última frase do teu post, penso que é uma minoria mínima que tal pensará (eu nem conheço, nem pessoal nem historicamente quem o faça, mas aceito a possibilidade ;)

Bem, e não há bem uma apreensão/reconstrução, ou melhor, dito assim é um pouco confuso, parece um kantismo qualquer mal digerido e interrogado. O que se passa com os modelos científicos é que têm uma relação análoga e de explicitação da apresentação e actividade das coisas (não se vêem átomos nem quantas) e que é na relação entre os dois planos, digamos assim, que se infere verificacionalmente a consistência e inconsistência das teses. Para além, evidentemente, do debate entre pares e não pares.

O problema tem que ver com metodologias, penso eu. Não há problema algum em os métodos científicos não servirem para uma aferição do sentido da vida (que é uma actividade do sujeito enquanto sujeito, isto é, uma interrogação sobre o todo formal e concreto de si e da vida, a que corresponde uma produção de determinações próprias da sua interioridade vivida, e que tem naturalmente resultados culturais e religiosos objectiváveis enquanto presença de tal actividade na história pessoal e colectiva do ser humano).

Que tal escape ao método científico no geral, decorre da natureza da própria actividade científica: a conceptualização da vida sem retorno à singularidade concreta e obscura do sujeito vivido – e por isso, a psiquiatria sem a psicologia dinâmica, no fundo, não passa de exclusão e encarceramento (que seja químico ou prisional, agora para o caso tanto faz).

(Esta última é um pouco facciosa… é uma homenagem aos pensadores e agentes do desconstrutivismo e da esquizo-análise ;)

Isto não significa evidentemente que não se possa e deva estudar biologicamente a experiência mística, poética, artística, amorosa… mas convém, para mantimento da lucidez, manter a consciência de que o resultado de tais investigações retiram tais acontecimentos e actividades do seu lugar de sentido próprio. Por isso é que ninguém cura uma dor amorosa através da descrição biológica do seu estado (enfim, ninguém, nestas coisas nunca se sabe… ;)

No fundo, a questão é que as coisas humanas (nihilismo e cepticismo incluídos) são mais complexas e pertinentes do que a histeria ideológica dum ponto de vista que fazer crer, apenas porque se sente ameaçado pela alteridade (e o que é grave, pois corresponde a uma mutilação existencial, seja o poeta a fugir do modelo seja o conceptualista a fugir da sua singularidade).

A unicidade da verdade ou da “realidade per si” (embora esta expressão seja uma contradição, pois a realidade constitui-se preciamente na diversidade dinâmica) é outra questão que deixo por ora de parte (ufa!)

Beijos, e bom fim-de-semana.

PS: Desculpa lá a extensão mas estas coisas… requerem mais do que três pancadas ;)

Anónimo disse...

Ora bem, eu creio que tais vozes, como dizem muitos psiquiatras, são reais. E tanto são reais que os psiquiatras receitam medicamentos para estes casos; não tratam tais doentes como simuladores, fingidores. As vozes são ouvidas enquanto reais. As vozes são reais na sua apreensão. Outra coisa é que sejam reais para lá da apreensão. Mas em ambos os casos elas impõem-se como tais. Creio que este é o grande passo que a fenomenologia deu para ultrapassar o estéril dualismo entre realismo e idealismo. Com o consequente nhilismo...

Podemos duvidar da existência de muitas cosias para além da nossa apreensão. A nossa vida poderia tratar-se de um sonho... Contudo, há algo de que não duvidamos: da nossa apreensão propriamente dita. Ela é real, mesmo que se trate de uma alucinação. Ou seja, mesmo no meio da maior dúvida ou da máxima «epochê» (suspensão do juízo) temos um dado absoluto, que é a nossa própria apreensão. Este dado é ainda mais radical do que o «ergo sum» que se segue ao «cogito» cartesiano.

E a propósito de Descartes, nada indica que a posição de Descartes implique alucinações. Trata-se de um método (caminho) para fundamentar o conhecimento. E digo isto mesmo tendo em conta que ele disse ter tido a sua intuição mais importante num dia 11 de Novembro à noite... Ora, ora, era dia de S. Martinho... :-) De qualquer forma, creio que a posição de Descartes não é nunca nihilista no pleno sentido do termo. Já a posição de Kant leva mais facilmente, segundo alguns autores, ao cepticismo (concordo) e ao nhilismo (não tenho isto tão claro, mas admito que sim).

Tudo isto parece indicar algo importante: há muitos «âmbitos» de realidade e esta não se confunde com as coisas. Nunca ninguém viu «a» a realidade. Captamos coisas e perguntamos o que é que elas têm de realidade. Em primeiro lugar, elas apresentam-se como reais na nossa apreensão; depois iremos tentar averiguar o que são realmente «na» realidade para lá da apreensão.

Cada vez fica mais claro que todas estas questões precisam de instrumentos filosóficos. O problema é que o mundo se move a uma enorme velocidade e o pensamento filosófico não se dá bem com a pressa...

Cada vez mais é difícil entrar no chamado «pensamento lento»...

Alef

BLUESMILE disse...

Uma breve nota para cumprimentar o vítor ( abraços) e o alef, pela profundidade dos vossos comments.
Nem sabem até que ponto me estão a ajudar na cosntrução de uma linha de pensamento epistemológico...
Obrigada.