domingo, junho 24, 2012

èden revisitado

Na Cerdeira, ao fim da tarde, não há silêncio. O barulho do regato sobe colinas acima, por entre os pátios das casas, os caminhos de xisto  e o cheiro intenso a ervas bravas. Só a luz permanece nas ruelas vazias. O fontanário, tem um copo ao lado, de vidro,  para qualquer caminhante que chegue. O copo de vidro, doméstico, robusto, é encantador no meio do nada.Uma espécie de mesa posta, um recado de boasvindas. Mais abaixo,  à porta de uma casa, alguém escreveu com giz vermelho, na lousa - "não há dinheiro que pague este silêncio".
Avançamos entre casas arruinadas e outras entretanto em recuperação, num vazio total de vozes, só pássaros, água e o rumorejar de castanheiros. É o primeiro dia de verão mas ´inda assim a montanha só amornece do lado soalheiro, portas de madeira, azuis, traves antigas, uns restos de jardins com pequenas portas de elfos. Tudo intocado, puro e imaculado. Maldigo os saltos dos sapatos citadinos e a laje ao sol, no  fundo da garganta da aldeia que sobe a pique, acaba por me albergar, ofegante de cansaço.
Foi mais ou menos por aqui que o velho matou a velha. Uma metáfora do fim do éden. Esta é uma terra de sangue. Décadas atrás,  á medida que a aldeia foi ficando deserta, dois velhos ficaram  na suas casas de fim de mundo, rodeadaos por verdes e águas por todos os lados. A solidão da serra poderia tê-los aproximado ou criado qualquer tipo de solidariedade. Afinal eram dois velhos, perdidos do coração da serra, sem nenhum contacto humano ou ligação ao mundo - sem televisão ou  sem  luz eléctrica. A  solidão mais monstruosa - a do ódio - foi crescendo.. O fontanário - data de 1938 - não impediu a sangria da aldeia.   A partir do anos quarenta. Lenta mas inexorável até só ficarem duas casas habitadas.  E foi aqui que o  homem matou a mulher á sacholada por  uma questão de águas. A aldeia ficou definitivamente deserta.
O que é estranho é que há água por todo o lado, a escorrer em cascatas, das veredas.

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