sábado, julho 10, 2010

Todos para a rua

Tive poucos  momentos de terror na minha vida, mas todos na infância.
Um deles foi em  1975, quando uma vaga de ódio varreu o país, alimentado por muitos, mas também pela Igreja Católica. A cena ocorreu depois da missa dominical, obrigatória para qualquer criança da minha idade.
Os homens, embriagados de ódio, começaram a juntar-se aos magotes em frente à Igreja, depois da missa, animados de um furor apostólico anticomuna. A missa fora um bom pretexto: armas de caça, facas, paus, uma ou outra granada, facas de mato,  começaram a aparecer por todos os lados entre obscenidades e  gritos de ódio, em breve uma pequena multidão ululante estava pronta para a luta e para o linchamento, em redor da Igreja.
Nós as crianças, transidas com este cheiro obsceno a morte, fomos as últimas a saír  da Igreja  agarradas às mãos das mães, que coravam com as obscenidades e nos tentavam proteger com o corpo da agitação suada dos homens.
Havia um cheiro inconfundível a  a tabaco rasco e alcóol de taberna, misturado com o perfume velho dos fatos endomingados, e nós passámos afoitas entre as ondas da  multidão e ficámos mais ou menos cercadas num canto do adro da igreja, sem conseguir passar.
Carros começaram a aparecer de todos os lados - jipes, tractores, um BMW do senhor lá do sítio, cães de caça, a caravana estava pronta, os homens partiam para a caçada. Quem nunca enfrentou este bicho esfomeado de sangue que é uma multidão a saque não sabe do que escrevo. Em breve a milícia encontrou um alvo - havia uma sede do PCP a uns Kms de distância - a objectivo era incendiar a sede e matar todos os comunas que encontrassem pelo caminho.
O adro esvaziou-se quando a procissão de carros milicianos partiu na mesma euforia católica.Fez-se um grande silêncio até ao fim do dia. Quando os homens voltaram traziam a euforia dos jogos de futebol e relatos da vendecta, que contavam às mulheres e  crianças.
 A sede do PCP arrasada e incendiada, mobílias atiradas pela janela, várias pessoas espancadas, um homem que ia na rua e tentou resistir quase foi espancado mortalmente e teve de ser hospitalizado, ( soube-se depois que era um transeunte aflito que tentava passar a barreira humana para ir à farmácia mais próxima, ao virar da esquina),  o cheiro a alcool ainda mais intenso, duas horas a cercar a casa de um comuna, de corda na mão e só a intervenção da tropa impediu o enforcamento (o terrífico comuna era apenas um operário textil que se assumia sindicalista e nem sequer era do PCP).

No domingo seguinte a tia não nos deixou ir à missa. Era Verão.

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