Percorri pela última vez a estrada à beira-rio entre o hospital e casa, um trilho magnífico entre a montanha e o rio. Demorava quase uma hora e havia dois lugares onde às vezes parava o carro, sempre que tinha de fazer o percurso, sobretudo à vinda, por causa dos horários. Chamava-lhes as minhas ilhas.
Num recanto a seguir a uma curva, debaixo dos meus pés o rio projectava-se contra a montanha, em redemoinhos fulvos, num rebordo fosforescente que muda de cor consoante as estações do ano. Ficava ali uns minutos a ouvir o silêncio a sussurrar, só quebrado pelo gorgolejar do rio, lá em baixo, ou pelo vento. O silêncio era tão audível, sobretudo no verão, que se podia tactear encosta fora. Enquanto respirava, lavava o olhar e a mente dos terrores e sofrimento da manhã no hospital. Às vezes o cheiro angustiante a doença permanecia nas narinas durante uns kilómetros, velhos rostos e velhas sombras afogavam-se na beleza das paisagens.
Nos últimos dias um casal de milhafres acompanhava-me parte da estrada, em voos lentos tão próximos que instintivamente erguia a mão num saudação lunar.
Penso nos doentes que não verão o voo dos milhafres, NEM O RIO AGORGOLEJAR NO SOPÉ DE MONTANHAS.
Nunca mais os vou ver.
Nem aos milhafres que me saudavam na estrada.
A vida é feita de pequenos fins que se encadeiam.
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