FNAC, Porto, no meio de livros, música e um café. O ambiente é distendido, acolhedor mesmo, nada de verdadeiramente assombroso se passa no mundo, com jazz à nossa volta.
O telefonema atordoa-me. È das Canárias e uma voz querida, com uma terrível perturbação e um cansaço que se sente em cada palavra, lembra-me dessa realidade aqui ao lado. Uma nova vaga de imigrantes oriundos de África ( a maior parte do Senegal) chegam em barcos minúsculos e ridículos. Chegam os cadáveres, crianças, corpos desidratados, hipotermia, tifo, tuberculose, sida, em vagas que não param, nós nesta Europa cada vez mais fortificada onde batem as vagas dos esfaimados do mundo, a construir "campos" de refugiados, campos de famintos, a toda a volta par que não entrem, rusgas que já nem são rusgas, são uma espécie de salvamento internacional feito por polícias perplexos, contam-me que nas Canárias, a crianças nas escolas, em vez de desenharem o pai natal, desenham corpos estropiados nas praias, homens a rodos de olhar esbugalhado que fitam os salvadores, nós no nosso conforto doméstico preocupados com aquelas rotinas sociais que pensamos que fazem o mundo funcionar, mas não fazem, o que faz o mundo funcionar ( ou desmoronar-se) é o desespero de crianças metidas em pirogas, com remos ridículos para enfrentar o alto mar, sem roupa sequer para os proteger, sem comida, sem água, sem nada que não este olhar do mais absoluto desespero, vazio das lembranças da fome, vou-te mandar mais fotografias pelo TMV, não os mostres às crianças, não percebo porque não se fala mais disto, é uma catástrofe. E aqui estou na FNAC, no Porto, enquanto mais botes chegam às Canárias e corpos de crianças são atirados borda fora.