sexta-feira, fevereiro 08, 2008

Anjos


- Tinha uma doente, uma mulher de quarenta anos, em fase terminal, um processo longo, doloroso, cheia de metástases, sabíamos que ia morrer a todo o momento, ela também sabia, um dia tínhamos acabado de fazer lhe a higiene, estava fresca, penteei-a com cuidado, estava um mimo, (é preciso conhecer bem a Enfermeira R para termos mesmo a certeza que a doente estava um mimo, higiene perfeita, bem posicionada, com aquele toque que ela tem, a Rosário anda sempre impecável, maquilhada, adora brincos e adereços, usa perfumes sofisticados que nos fazem adivinhar quando passou pelo gabinete), e de repente a doente olha-me e diz-me:
- Dá-me água, preciso de água...
Ela já não conseguia deglutir, mas fui-lhe buscar a água, a ideia era molhar-lhe os lábios com uma compressa,
- Não é isso, preciso de água, disse a doente numa angústia tal, como se a morte lhe estivesse a sorver os restos de água da pele, num desespero tal, que de repente olhei para ela e percebi, em vez de ver o corpo mirrado, corroído pelo cancro, vi uma espécie de flor murcha, sequiosa, a consumir-se em sede, conto-te isto porque és da psiquiatria e entendes, deu-me uma coisa, fui buscar uma garrafa de soro fisiológico, afastei os lençóis e puz-me literalmente a regar a doente dos pés à cabeça com o soro, como se fosse uma planta e eu fosse chuva, as minhas colegas vieram a correr, achavam que estava maluca, que estás a fazer, R, deixem, a doente é minha, e a doente sorria, um sorriso de alívio que ainda hoje guardo, como se estivesse a apanhar chuva, suspirou ligeiramente e parou de respirar, as colegas tiraram-me o soro da mão, e só me lembro que a mulher morreu a sorrir.

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