segunda-feira, setembro 17, 2007

Naquela manhã os miúdos foram às escondidas espreitar a moribunda. Nunca tinham visto uma quase morta e a casa estava assim, numa agitação, a porta entreaberta, a família, visitas e amigos que entravam e saíam em compungido silencio, á espera de qualquer coisa. Antigamente, as mortes dos velhos eram assim, em velhas casas de família, com todo um ritual de luto antecipado e uma espécie de liturgia comunitária.
As crianças tinham apanhado aqui e ali a conversa dos adultos e uma coisa era certa – a velhota agonizava.
Com o coração aos pulos subi a escada movida por uma curiosidade que nunca sentira. O que era morrer? Como eram as pessoas quase mortas?
De mansinho empurrei a porta entreaberta e entrei no quarto sem que ninguém reparasse. Lá dentro, uma agitação silenciosa. Várias mulheres moviam-se na sombra. E então, de peito cheio de ar enfrentei o rosto da moribunda. De boca entreaberta, um tom de pele inerte, feia, feíssima na repulsão da agonia, fitava-me com uns olhos baços cobertos de uma película esbranquiçada que me nauseou. Respirava ainda, num estertor sussurrante, que se misturou com o cheiro do quarto (o cheiro a morte colado ás paredes) e o grito súbito de uma das mulheres a enxotar-me para que não visse aquilo. Mas vi, desci as escadas em turbilhão com um vómito retido e a imagem da película baça a escorrer dos olhos da quase morta revolvia-me o estômago.

Então a morte era isto, um vómito, uma película repugnante no olhar.
E de repente, misturada com a náusea, senti uma alegria animal, uma exaltação inebriante completamente nova. Larguei a correr até me faltar o ar e o coração explodir na garganta só para sentir os pulmões cheios de vento, as pernas e os braços a mexerem-se em liberdade. Quando parei, exausta, transpirada e inebriada de sensações luminosas dos meus seis anos, percebi de súbito a causa da euforia.
Ainda bem, és tu velha que estás morta, eu estou viva, estou viva, estou viva.

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