domingo, dezembro 17, 2006
Ùteros transparentes
No dia em que deu entrada na unidade fiquei nua de sentimentos perante aquela mulher. Uma mistura de raiva profunda ( mas quem foi o monstro que te fez isto??) compaixão e perplexidade.
Era uma criança num corpo de mulher. O diagnóstico referia uma oligogrenia profunda, próxima daquilo que os manuais clássicos de psiquiatria classificariam de imbecilidade, associada a alterações do comportamento.
Para nós passou a ser a menina. Um rosto disforme, uma grave deformação física associada a um retardo mental profundo e irreversível. Tão profundo que praticamente não falava (não fala). Monossílabos simples, sim não, comida, “nina”, e um léxico considerável de coprolália para expressar dor ou desconforto. De vez em quando podia autoagredir-se. Sobretudo quando a gravidez que motivou o internamento se tornou mais evidente e ela não conseguia lidar com o desconforto inexplicável daquele peso horrível na barriga, as pernas inchadas, as dores ocasionais.
Chegou ao serviço em estado de gravidez avançada. Tão avançada que finalmente (e só então), se tinha tornado evidente a situação para o meio de pertença. Tão avançada que a hipótese de aborto terapêutico estava completamente posta de lado.
Para nós tratou-se de fazer diariamente a gestão de uma gravidez medicamente vigiada com eventuais alterações comportamentais que pusessem em risco a mulher e o feto. Em cada consulta obstétrica de rotina a forte sedação era obrigatória. A higiene pessoal, a alimentação, a segurança, a comunicação eram prioridades face a uma doente mental gestante altamente dependente. Higiene oral, o pentear os cabelos, os cuidados básicos com o corpo, a alimentação, tudo, mas mesmo tudo teve de ser prestado, /organizado, com paciência e persistência… E o internamento hospitalar até ao momento do parto tornou-se absolutamente obrigatório.
Oferecemos-lhe uma boneca com que passava os dias a brincar, tentámos explicar-lhe que trazia uma espécie de boneca dentro da barriga.Inutilmente,. Um olhar apagado e infantil fitava-nos ás vezes, numa perplexidade muda. Quando o desconforto era insuportável punha-se em posição fetal e bamboleava-se longamente agarrada á barriga. Curiosamente começou a chamar “mamã” a alguém da unidade.
A partir daí passou a ser oficialmente “ a menina" e passeava muitas vezes nos corredores de mãos dadas com “ a mamã”.
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2 comentários:
:(
Olá, bom dia, apetecia-me "falar" consigo mas não consigo encontrar o seu endereço mail em lado nenhum no blog. Será que me podia dar um sinal de vida? o meu endereço está no perfil
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