O país mudou. Os portugueses mudaram. Felizmente já não somos um povo vestido de escuro porque os lutos eram eternos e porque o escuro, sobretudo aquele maldito cinzento, BI da nossa pobreza, ficava bem com tudo, servia para todas as estações e não dava nas vistas. Tudo - ou quase - mudou mas o retrato das mulheres não. É certo que podemos exercer todas as profissões e cargos. Quanto às profissões exercêmo-las. Quanto aos cargos vamos indo. Claro que podemos estudar o que quisermos. E não só estudamos como estudamos mais do que os homens. Mas lá no fundo, debaixo do verniz sobre a igualdade e as questões de género, mantém-se vivo aquele medo profundo e ancestral perante esse corpo excessivamente poderoso que é o das mulheres.A gravidez é o reverso positivo e exterior duma moeda onde constam matérias mais inquietantes como a menstruação ou a menopausa. Expressões modernas como «tratamentos de compensação» - aplicadas à menopausa - ou o popular «limparam-na», usado como sinónimo da histerectomia, confirmam como se mantém latente essa concepção das mulheres como um corpo não só desequilibrado mas também conspícuo e imprevisível.
Se a maternidade é aquilo que redime as mulheres dessa espécie de poder biológico excessivo, o aborto é aquilo que o reforça.Nestas coisas não mudámos muito.
Sobre a feiticeira estendemos o perfil doce da Virgem grávida. Mas a feiticeira continua lá. Sobre os corpos domesticados a regimes e ginásticas continua subjacente o espectro da megera.
E ao menor pretexto esses fantasmas de sempre voltam a assombrar-nos os dias. Se se reparar a discussão sobre a interrupção voluntária da gravidez é, em Portugal, uma discussão sobre o poder das mulheres. O debate em torno do aborto é exclusivamente sobre se o aborto pode ser feito 'a pedido da mulher'. ..
Helena Matos PÚBLICO, 2 de Dezembro
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