O putedo nada tem a ver com a concupiscência ou com a sexualidade.
Tem a ver com o poder .
quinta-feira, janeiro 23, 2014
Os sobrinhos de deus
"
Há
católicos tão bem, tão bem, tão bem, que tratam Deus por tio. De facto,
chamá-Lo pai seria ficar automaticamente irmã, ou irmão, dessa gentinha
pé-descalça e malcheirosa que vai à Cova da Iria de xaile e garrafão.
Tratá-Lo por Senhor seria reconhecer-se de uma condição servil, que está
muito bem para as criadas e para os chauffeurs, mas que não é
compatível com quem é, há várias gerações, gente de algo.
Os
sobrinhos de Deus gostam muito de Jesus, porque Ele é superfantástico:
andou sobre o mar e fez montes de coisas giríssimas. Gostam tanto d’Ele
que até Lhe perdoam o ter sido carpinteiro, pormenor de gosto duvidoso
que têm a caridade de omitir, sempre que, ao chá, falam d’Ele. Também
têm muita devoção ao Espírito Santo: à família do banco, claro, pois conhecem-na toda da Quinta da Marinha e de um ror de sítios muito in, que tudo o que é gente frequenta.
Alguns
foram a Fátima a pé e acharam o máximo. Levaram uns ténis de marca,
roupa desportiva q. b. e um padre da moda. Rezaram imenso, tipo um
terço, sei lá. O resto do tempo foi à conversa, sobretudo a cortar na
casaca de uns quantos novos-ricos, um bocado beatos, que também se
integraram na peregrinação (já agora, aqui para nós, mais por fervor aos
sobrinhos de Deus do que a Nossa Senhora, mas note-se que isto não é
ser má-língua, mas a pura verdade, à séria).
Têm
imenso gosto e casas estupendas. Quando olham para um crucifixo em
pau-santo, com imagem de marfim e incrustações de prata, são capazes de
reconhecer o estilo, provavelmente indo-europeu, identificar a punção,
pela certa de algum antigo joalheiro da Coroa, e a data, até porque,
geralmente, é igualzinho a um lá de casa, ou muito parecido ao da capela
da quinta. Só não vêem o Cristo, nem a coroa de espinhos, nem as
chagas, que são coisas de menos importância.
Detestam
essas modernices do abraço da paz ou da Igreja dos pobres, mas não é
que tenham nada contra os pobres, apenas receio de doenças contagiosas.
Também
não são muito fãs do senhor prior, nem do Papa Francisco, simplórios de
mais para os seus gostos sofisticados. Mas derretem-se quando se
cruzam, nalgum cocktail, exposição ou concerto na Gulbenkian, ou em São
Carlos, com alguém que os fascine pelo seu glamour, pela sua cultura,
pela sua inteligência ou poder porque, na realidade, o principal santo
da sua devoção é o príncipe deste mundo.
Uma
só coisa aflige os sobrinhos de Deus: que o céu, onde já têm lugar
reservado, esteja mesmo, como se diz no sermão das bem-aventuranças,
cheio de maltrapilhos."
http://www.publico.pt/sociedade/noticia/os-sobrinhos-de-deus-1618710
Subscrever:
Mensagens (Atom)