quinta-feira, janeiro 31, 2013

Aventuras e desventuras de Chico Agulha 1

No dia em que convidei o  Chico Agulha para ir ver o Porto-Benfica lá a casa devia ter levado com qualquer coisa na cabeça. Em boa verdade, nem foi eu que o convidei, foi ele que se fez convidado, estávamos nós a combinar umas minis e uns tremoços pra depois da hora de serviço, quando ele, com aquele ar  pegajoso de  pendura disse - eh cambada, tá combinado!
  E pronto.  Às cinco horas lá estava ele a tocar a campainha da vivenda, com uma grade de cerveja às costas e  um grande sorriso desdentado. Não  sei se foi por causa das minis,  se por pena da falta de dentes, não tive coragem de o enxotar. E foi assim que Chico Agulha entrou na minha casa, passou pelo galgo de loiça do hall de entrada e se estatelou no sofá de pele, entre baforadas, copos sujos e cascas de tremoço, enquanto a malta gargalhava insultos ao árbitro... 
À meia-noite,  já o jogo findara e os homens começavam a  modorrar a excitação do festejo, satisfeitos da minha Miquelina ter deixado o frigorífico abastecido de moelinhas, pica-paus e outros pitéus condimentados.  Chico Agulha, companheiraço da farra, ganhara a simpatia à conta das vinte e quatro minis a saír do congelador para a goela da maralha. Foi então que a coisa começou a descambar. Chico Agulha começou a tremer, voz a empastelar, cólicas de barriga. À medida que a euforia dos outros amornava, crescia a sua agitação.  A certa altura perdeu a cabeça. Tremia, suava em bica - ajudem-me, ajudem-me que não tenho produto e estou a ressacar. 
Ah, meu cabrão bem me tinham dito que te chamavam agulha porque metes p'rá veia queres ver que o gajo se apaga aqui no sofá? Ai se a minha Miquelina sabe que um cadáver lhe sujou a sala, granda filha da puta, livra-te de me morreres aqui... por essa altura já o Chico espumava p'la boca e revirava os olhos e foi num ai que o agarrámos em ombros e o carregámos porta fora até à rua. No meio da confusão esbracejou um convulsivo braço e deitou ao chão o cão de louça do hall de entrada, para meu desespero. Levem-no p'ra Coimbra, levem-no p'ra coimbra que  se a minha Miquelina sabe que meti um drogado cá em casa mata-me,  mata-me.
Lá o enfiámos no porta-bagagens do opel corsa e vi-os arrancar  a duzentos à hora para o hospital. Aparvalhado e com azia lá voltei a casa limpar a lixeira da sala, esvaziar cinzeiros e recolher os cacos de galgo de loiça que Miquelina regressava de manhã da casa da mãezinha e ia sobrar p'ra mim.
De manhã cedo toca a vestir fatiota, abocanhar qualquer coisa e apanhar o comboio p'rá cidade. Foi ao chegar à estação que topei qualquer coisa. Os habituais companheiros de viagem, gente da vila que apanhava o comboio à mesma hora de todos o dias,  olhavam-me com ar transido, como quem vê um fantasma. Ou um assaltante. Ou um gajo com doença má.  Cochichavam sustos, sussurravam-me nas costas e dois  cumprimentos de bons-dias ficaram sem resposta. Até que o Zé Carlos comentou: Então, ganda farra lá em casa ontem hã?  E foi assim que fiquei a saber que Chico Agulha tinha ido parar ao Centro de saúde  lá da vila, com atendimento nocturno, em vez de recambiado p´ra coimbra. Os filhos da puta dos meus amigos tiveram medo que o gajo  morresse pelo caminho e lá o deixaram a espumar ressaca, uma receita suja de metadona no bolso, dobrada em quatro.
E foi  assim que me tornei no dealer mais perigoso da minha terra e arredores. Mais manhoso que Alpacino em dias maus, a  deixar morrer drogados, à míngua de dose.
Nesse dia sentei-me sozinho num canto da carruagem com uma súbita clareira de lugares à minha volta.

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