domingo, novembro 16, 2008

"Se soubesse inventar cegos, fazia-os dormir sob rimas de jornal algures nas proximidades de um cais, numa cidadecomo a nossa, rasgada por cursos de gente e água. Aí, poderiam montar um estabelecimento, após o pagamento e a espera na fila, diria ao cliente quanta destruição vem de saber o dia em que se viu o pai chorar e desconhecer como pode um cigarro fumado por outros, numa cozinha da nossa infância, influir na felicidade futura ou ignorar outro modo de a tosse ser hereditária. Uma vez acomodado num banco de três pés, o cego poderia passar a explicar como uma partida dura, não até ao dia do regresso, mas até ao dia da morte seja de quem partiu, seja daquilo que ficou, porque aquilo que se abandona não muda nunca a menos que se abandone mal: a menos que se volte já com outro peso nas costas, as esperanças inversas (o que querias de diferente para os teus quando foste, entendes hoje que será melhor que não tenham tido, para que recebas à chegada a mesma desarrumação doméstica, lenços sujos ou braços mal abertos).

O nosso excelente cego serviria ainda para outros efeitos, faria um traço no chão com a biqueira do sapato bom para manter o silêncio por mais alguns instantes, silêncio que interromperia depois, abruptamente, para se confessar um ser prosaico e diagonal que, como tal, não pode fazer senão versos ou esperar que, na cama de jornal onde dorme sozinho,(e já alguém esteve acompanhado numa cama?) possa vir a ter mais do que monólogos constrangedores, mais do que conforto amargo de saber que nada de nobre merece ser estragado para poesia. Ele que até nem tem nada de nobre,infeliz depositário das incertezas de terceiros ..." Colhido aqui.

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