sábado, dezembro 21, 2013

Natal

 

"No princípio era a Mãe. O Verbo veio muito depois e iniciou uma nova era: o patriarcado."


 Marilyn French

O pequeno fascismo

A converseta da treta de que "nós, europeus, estamos a morrer", só se aplica se estivermos a falar dos  europeus arianos. Porque nós, europeus do sul, mistura de árabes , negros e judeus, sabemos bem que nunca houve uma "raça europeia" e que a Europa sempre foi um cadilho de todas as culturas e de todas as cores . Não, não estamos a morrer. A população mundial atingiu um pico verdadeiramente catastrófico e continua a crescer. Basta abrirmos as portas aos imigrantes e a Europa enche-se rapidamente de pessoas e crianças. O incentivo à  natalidade, desde que branca e loira não passa de  conversas da treta,com uma perversidade  fascistóide.

quarta-feira, dezembro 18, 2013

A mulher adúltera



Jesus nada diz aos fariseus.
 Olha para a mulher aterrorizada, espancada, um farrapo deitado no chão à sua frente, à espera da execução inevitável . Na cara desfigurada da mulher vê-se a ele mesmo, o crucificado apupado pela multidão sedenta de sangue e violência. 
Mas quem o olha naquele farrapo é o rosto da sua própria mãe. Maria, apedrejada violentada, arrastada por uma multidão. O seu coração enche-se de compaixão. O segredo esquisito do seu nascimento, a nódoa de desconforto que carrega desde pequeno e de que ninguém fala. Jesus de Nazaré, o filho do carpinteiro, inclina-se e começa a rabiscar na poeira e em silêncio. 
Não sabe o que dizer. Não há palavras. Não pode defender publicamente a mulher, não pode violar a Lei de Moisés. Não pode salvar a mulher com a Palavra. Não pode condenar mulher à morte, porque ele sabe, dentro do seu coração, que se a lei de Moisés fosse seguida, a sua própria mãe, maria teria sido lapidada até à morte por adultério. Ele está curvado e em silêncio, porque não sabe o que fazer. Rabisca no chão intuitivamente e se calhar reza. Não sabemos. O silêncio deve ter contagiado a multidão porque de repente cada um deles olha para a sua vida, para a sua própria história, para os seus segredos de família, para os negrumes ocultos de cada coração, para os rostos amados que seriam lapidados sem piedade conjuntamente com aquela mulher. Cada um deles descobre as suas marias de nazaré, as suas irmãs, as suas mães, as suas amadas e concubinas, as suas filhas mais novas. 
É por isso que a multidão se dispersa pouco a pouco. Reza o Evangelho que o sentimento dominante naquela multidão que, literalmente “cai em si” é a vergonha. Deitam as pedras ao chão, envergonhados. A vergonha inicial do Adão e Eva quês e tapam para fugir ao olhar de compaixão de deus. A vergonha de Caim face à pergunta – o que fizeste do teu irmão?

Que fizeste da tua mãe?

segunda-feira, dezembro 16, 2013

Credo

"Creio na paciência de deus, boa e acolhedora como uma noite de verão"

Papa Francisco

O olhar.

O desafio para hoje é viver com uma nova inocência: olhar o outro com o olhar transfigurado da ressurreição. Transfigurar a fraqueza, o mal, o fracasso e as vulnerabilidades do outro em possibilidade de acolhimento.
A inocência de coração nada tem de ingenuidade - resulta de um trabalho íntimo centrado em Cristo.
Viver em  acolhimento e compaixão.

De luto

Um horror o que aconteceu na praia do Meco.

O que há em mim é sobretudo cansaço.

Para alguns católicos o natal é uma overdose de incenso, casacos de peles, música da antiguidade, plumas e arte rócóco, cumprimentos de gente bem. Por ali andam, circunspectos e inchados da volátil felicidade beatéria.
 Mesmo, mesmo  ao lado, o desespero da cidade roça as portas da catedral.
O próprio nazareno, se por cá andasse,  com o seu séquito de pescadores, aldeões, prostitutas, vagabundos e doentes que sempre o acompanhavam, seria impedido de entrar para não estragar o brilho do cerimonial.

sábado, dezembro 14, 2013

jesus era um filho antipático

Quando era miúda, o que mais me indignava nas historias evangélicas era a falta de educação de jesus com a própria mãe. Em boa verdade em nenhum sitio do Evangelho existe um único relato de respeito, de especial consideração e obediência. Um único gesto de carinho filial. Nada. Zerinho. Jesus chega a enxotar a mãe que vai aflita a sua procura, com os outros filhos atrás. Renega a própria família, o seu sangue,  a sua carne,  parece um daqueles adolescentes com vergonha da pacovice da mãe que o vai buscar, mal vestida, ao colégio dos meninos betos. Até na cena do primeiro milagre, aparece um jesus agressivo, chateado, a meter a velha  no seu lugar, que ainda não era tempo de fazer uma milagrezito peticionário. 
Não sei como inventaram depois a ideia  de que esta mulher judia, rejeitada por todos, a começar pelo marido passando pelo filho mais velho,  era afinal  uma deusa poderosa.

O Joaquim Doido


Quando entrei pelas portas de madeira da casa, três vezes a minha altura, estava longe de imaginar que estava a transpor o portal para uma outra qualquer dimensão digna das viagens do tempo do Dr Who numa cabina telefónica.
O jardim da entrada, com azulejos do séc. XVII e a fonte a fingir, faziam a prisão  parecer um pequeno palacete de burgueses entediados, mas eu vi logo que a sereia da fonte tinha a boca retorcida, um bocado de pedra fracturada no sítio da cauda e isso pareceu-me um presságio de mau olhado.
Por essa altura ainda não tinha a certeza mas logo aprendi – o fim do mundo começava ali.
Agarrei-me ao telemóvel como alguém que se afoga se agarra a uma tábua flutuante por ali a passar. As pessoas eram estranhamente afáveis para mim, enquanto me pesavam, me mediam, me examinavam  a boca e a língua,  me atavam no braço uma braçadeira que inchava ao som de apitos, eu de costas para a verdura da luz, prestes a atirar-me de cabeça para o nada, agarrado ao telemóvel-bicho-de-estimação, uns usam medalhas e amuletos, eu uso sempre o telemóvel , as árvores do jardim tão amarelas que metem medo, a luz inacreditável a bater no teto do meu coração, um cão labrador a trotear no parque ao longe, sem qualquer açaime ou rigor, a rapariga de bata branca a espreitar-me por detrás do olhar castanho, olhos doces, pensei, pode um carcereiro ter olhos doces? as mulheres daquela idade são tão iguais, as prisões também, só quando me tentaram tirar o telemóvel é que reagi, deu-me um súbito ataque de náufrago desesperado, consciente (escreveram depois que entrei em agitação psicomotora), deu-me um ataque, mordi, esperneei esbracejei, esmurrei, dei pontapés,  quatro gajos de farda vindos do nada caíram sobre mim como num assalto de rugby, seguraram-me à força, arrastaram-me no chão - enquanto pude reagi, mordia, urrava, agarrava-me às portas e ao chão, raspava as unhas nas paredes, acho que mordi um gajo por cima da farda até à carne, o sabor do sangue encheu-me a boca. Arrancaram-me a roupa e o telemóvel ao mesmo tempo, puxaram-me o cabelos até estar  completamente imobilizado,   acho que levei um ou dois murros, sem saber como já estava completamente amarrado,  deitado na cama, atado de pés e mãos,  só baba e sangue a escorrer-me pelo queixo  abaixo, a sereia da fonte com a boca toda retorcida a pairar aos rodopios à  minha volta, eu gritava que me tinham envenenado, que me iam matar, as árvores tão amarelas de meter medo, enfiaram-me um tubo no braço esquerdo enquanto eu urrava, senti a agulha na perna direita, a seringa cheia, o líquido espesso a adentrar-me nos  músculos contraídos, um ferro de touro nas touradas, e eu era o touro, bufava, atado, picado, qual telemóvel qual quê, a rapariga de bata branca afinal sem qualquer doçura nos olhos,   e eu ali, só pele e ossos, quase nu, as peles da barriga a balançarem, ninguém  sabe do quanto a loucura pode ser definitiva, sem qualquer epitáfio que mereça festejar.  

E foi assim que me morri no dia catorze de dezembro de 2013, o ano de todos os bichos, o ano de todas as folhas amarelas de meter medo, o ano de todos os cães sem açaime, o ano em que , verdadeiramente, comecei a viver.

Clareza


sexta-feira, dezembro 06, 2013

Invictus

Out of the night that covers me,
Black as the Pit from pole to pole,
I thank whatever gods may be
For my unconquerable soul.

In the fell clutch of circumstance
I have not winced nor cried aloud.
Under the bludgeonings of chance
My head is bloody, but unbowed.

Beyond this place of wrath and tears
Looms but the Horror of the shade,
And yet the menace of the years
Finds, and shall find, me unafraid.

It matters not how strait the gate,
How charged with punishments the scroll.
I am the master of my fate:
I am the captain of my soul.

Uma menina à janela

Quando Maria Manuela  se chega à janela da marquise, dezembro acaba de começar. 
A esta hora , os varredores de rua arrumam o resto do dia em  caixotes apressados.
A marquise é só alumínio verde, vidro laminado, paredes de humidade onde Manuela espreita a rua de kispo de penas em cima do pijama, um gorro da feira dos ciganos a imitar grandes marcas. Está frio. Maria Manuela acende o cigarro, durante uma centelha de segundos o bafo do isqueiro aquece-lhe a bochecha esquerda descaída do uso da idade, o calor conforta-a da lonjura, arrasta um pouco mais os chinelos até ao sol. 
 Um pôr-do-sol em  carne viva enlaranja a marquise. Doem-lhe os joelhos, tem uma dor surda no períneo, do lado direito, uma dor pequena, uma mordidela contínua, de pé  está melhor.  Aperta o kispo contra o peito, espreita pra lá dos vidros, do alumínio, dos quadrados do quarto andar de bairro periférico, ao longe o douro mergulha no mar, o último barco regressa ao porto,carregado de peixe e de gaivotas. Devem ser mais gaivotas que peixe, gaivotas a rodopiar grasnidos de antecipação. A luz é tão doce, cor de pêssego a escorrer para o chão da casa como poças de água enluaradas,  Mané acende o segundo cigarro, a casa mais gélida da noite a cair, gelosias desfeitas, alumínio a estalar, o sítio exacto da dor-em-picada-de-agulha. 
A esta hora, os namorados desencontram-se ao lusco-fusco, vagamente imóveis frente a relógio imaginários. Mané espreita os chinelos quase com medo que os charcos de luz espalhados no chão as impregnem de humidade. As cores de agora são já da noite, uma linha laranja ao longo do mar seguida de vários tons de azul impossível a rasgar o avanço da definitiva escuridão. Sobre a beira da autoestrada a lua ergue-se, fêmea esvaziada de vísceras a parir a noite. Né está agora às escuras na marquise, quase gelada, não sente as mãos encrespadas no último cigarro, gorro-de-marca-a-fingir enfiado no cabelo fino, Kispo de penas sobre o pijama, chinelos de feltro húmidos.
Está na hora. Né volta as costas ao mar, aos farrapos de sonho que lhe limpam o olhar e entra na cozinha.
 Daqui a pouco, o seu turno de puta-de-rua vai começar...

quinta-feira, dezembro 05, 2013

O sonho da Miquelina com o defunto marido



Hoje sonhei com um homem. Um homem apaixonado. No meu sonho, a boca dele desesperava de fome. Por mim. O rosto sugava-me e eu sentia-me empurrada em rodopios para aquela boca, uma sofreguidão de entrega.A fome dele por mim era a minha fome por ele. O sonho era sobretudo de palavras a sangrar. No sonho, o meu amado queria dizer-me coisas e não conseguia, as palavras do silêncio queimavam como luzes, balões, quase, quase-orgasmos, no escuro, a voragem, uma vertigem. A fome toda do mundo não chega para explicar palavras de amor por dizer. Em vez de falar ele atirava-me cartas para o colo, folhas de papel escritas, cartas antigas, daquelas que se mandavam por correio com linhas azuis para escrever por cima, nunca te cheguei a mandar a carta, repetia ele, e eu pasmada, mas qual carta?, nunca te disse quanto te amava , repetia, isso mais o olhar, o olhar onde cabia a fome toda do mundo, aquele olhar do encontro depois do abismo.
Esta noite sonhei como o meu  morto, e por isso sei. Todo o amor é infinito, nenhum amor acaba, um homem que ame uma mulher nunca a deixa, não pode, mesmo que queira, não consegue. Persegue-a em sonhos,  penetra-lhe a pele, viola-a de noite. No meu sonho, nem o cheguei a beijar. Já lhe tinha dado os beijos todos, o amor era mais antigo do que o tempo, do que a morte, no meu sonho ele falava sem palavras e eu entendia-as todas, sabia daquela fome, de mim, da busca, da voragem , não posso mas sei, estou longe, mas sei, o amor não acaba nunca, o amor cabe na saliva da alma, o amor das palavras que nunca foram, das possibilidades fechadas e por isso mesmo abertas, dos filhos paridos e dos que não foram paridos, dos sonhos mal e bem sonhados, tão límpidos e vividos como o fluxo subterrâneo que nos alimenta os dias.

Segunda-feira



 
Os fiordes já estão acordados, o cabelo comprido das águas, as cascatas a golfejarem para a boca das falésias, riscos de vidro até ao mar. O verde do mar, tão fundo, tão gutural como a morte. O mar não é azul por aqui. Olha-se para a água e sabemos que é gélida, gélida como o verde mais escuro, e no entanto, temos de nos agarrar com força à amurada do barco tal é a vontade de mergulhar. Sobre a cabeça, o voo picado das gaivotas e dos albatrozes, estico o braço e posso tocar-lhe as asas imensas a branquear o azul, o marujo atira-me um berro, as gaivotas são perigosas, segura-me o braço, meio aflito, recuo, elas seguem-nos mar adentro, os braços da terra abrem rachas enormes até ao abismo, peixes ardem à superfície da água, alguma coisa ali lhes adominga as almas.
Respiro. A inocência das aluadas veredas que se estendem até ao sul. A noite demora a começar. Olhas o sol e pensas, é agora que a noite vai cair sobre ti, quatro horas passadas e o sol está no mesmo sítio, o mesmo bafo tricolor, laranja anilado, beringela doirada, um vento que tritura os ossos, as últimas gaivotas que se acoitam atrás do vento. 

Visto o casaco.


quarta-feira, dezembro 04, 2013

Sessão de Quimioterapia IPO



Das janelas da sala, como escotilhas, vêem-se as árvores que deslizam à medida que a manhã flui. Volitivos pássaros afligem-se nos rebordos das coisas todas. Maria cruza os braços com uma energia lânguida muito própria, num misto de enfado e determinação. A primeira coisa a envelhecer numa mulher é a boca, as comissuras dos lábios vão descaindo inexoravelmente num rictus próprio da permanente zanga com o mundo. E assim, tão de repente como o navegar do dia, as mulheres transformam-se em vincos, esgares pontuais, o aguçar dos queixos. 
Das janelas da sala como num aquário, a paisagem golfeja p´ra dentro.

Uma ligeira dúvida vai corroendo o olhar. Oculta-se nos insterstícios dos plátanos. Acoita-se nas comportas do vento. Quanto tempo mais teremos para fazer render os nossos limitados rostos? Quantos dias nos sobrarão para mudar o mundo? Para todos os efeitos, a primeira coisa que as mulheres perdem é a doçura da boca, a gentileza dos lábios entreabertos, a cintilação da voracidade. As coisas funcionam assim – aquários dentro de aquários, a arquitectura das ruas, a nudez endérmica. Das janelas da sala, Maria debruça-se sobre o mundo sem história, que se vai narrando ao longo dos seus olhos. Não sabe se a velhice que lhe vai caindo sobre a cara é inevitável. Se a fome ainda vai servir para abocanhar.

Maria enfia mais dois anéis. Gosta de anéis coruscantes que lhe alongam as mãos e engordam os dedos. Um anel novo pode envolve-la numa outra percepção da realidade quando o olhar lhe descai para a pedra do anelar direito. O mundo fica mais organizado, de uma serenidade transparente, como se uma explosão silenciosa disciplinasse as coisas. O corpo de Maria está amestrado para longas horas de silenciosa complexidade, quando se senta, horas a fio, a poucos passos da janela-escotilha por onde as árvores passam a meter na veia a dose de quimio. A proximidade do verde trazido pelo vendaval de novembro, os anéis nacarados, a repetição incólume dos dias.
 A delicadeza esfíngica dos pássaros que finalmente entram na sala, ocupam os móveis, andam e em contracurvas sob os tetos, fazem ensaios de voos sincopados, ora magistrais ora inovadores. E neste disciplinar do corpo, neste entrecruzar dos braços de maria, a esperança ainda escorre, soro abaixo.