sexta-feira, outubro 26, 2012

Com licença poética


Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.


quarta-feira, outubro 24, 2012

O ataque ao Patriarca

O ataque informático à página da Internet do Patriarcado de Lisboa teve um alvo específico. Achincalhar a figura do Cardeal Patriarca . De uma forma pornográfica - numa fotomontagem de um homem velho nu. A crueldade da nudez envelhecida é acintosa como arma de agressão. Para qualquer um. Além do mau gosto, há aqui uma perversidade de fundo, uma infantilidade cínica de quase violação pessoal.
Não sei quem fez o ataque.
Mas sei que os  tradicionalistas católicos portugueses , esses que suspiram por missas em latim e pelo regresso aos bons costumes salazarentos rejubilaram de gozo.

terça-feira, outubro 23, 2012

Tarde

Não sei explicar isto, mas muitas vezes deus parece-me definitivo e inegável, como uma grande sombra translúcida sobre tudo onde o meu olhar assenta. Nessas alturas, deus nunca é grande nem sequer todo poderoso. Quando me encontra tem sempre  uma delicadeza extraordinária, como um amante perdidamente apaixonado. Tão vulnerável.
Encontro-me nele sobretudo de madrugada, ao sentir o sopro das coisas, esse grande respirar que faz a existência do mundo e paira no rosto do meu adolescente adormecido.
Encontro-o sobretudo nos meus velhos, porque quando os olho descubro os meninos que foram mas que eu nunca tinha visto até agora , os sonhos, ou até a fome que  ainda lá está. 

Tresleituras

No entanto, há uma grande alegria nas coisas todas, para quem percebe que a vida é apenas o sopro  da visitação. A cada hora somos visitados. A nossa humanidade é a narração de deus.
Morrer é quando há um espaço a mais na mesa afastando as cadeiras.

Lobo Antunes

segunda-feira, outubro 22, 2012

Retratos

"Chama-se Susana M. e é caixeira de farmácia. Tem um filho que praticamente herdou sozinha de si mesma, contada e descontada a irrelevância do masculino concorrente que com ela, há vinte e oito anos e nove meses, o co-gerou antes de fugir (todos os homens fogem, por esta ou aquela razão, por nada ou por tudo, a torto e a direito). O menino nasceu rijo, pondo-se de imediato, de goela escancarada como um tenor, a berrar vida, pelo que também de imediato começou Susana a pagar-lha.O infante fez-se rapaz, o rapaz entrou no ensino superior, ninguém sabe por nem para quê. Dez anos depois, ainda lá está, superior e por ensinar. Susana paga.
De novo só na comezinha realidade quotidiana, Susana cumpre o horário de trabalho de tão lavada maneira quão lavado é o branco da bata profissional com que ao balcão transparece, qual anjo compadecido da carestia dos medicamentos com que os pobres vão adiando a morte e a saúde.
Do salário, cada fim de mês, a caixeira liquida prontamente a renda de casa e os serviços que à vida privada dão dinamismo: água e luz, gás e lavagem das escadas, dízimo evangélico e quota duodécima da Associação de Senhoras que Não Dizem Mal Umas das Outras. Aos sábados à tarde vai ao hiper, onde se demora pouco e de onde regressa com os despojos triviais das comuns precisões: detergentes para roupa & louça, água mineral, uma caixa das médias de bombons, pescada congelada, feijão-frade de lata, ovos, leite condensado, comer para o pássaro, comer para o inevitável gato de todas as mulheres sós, velas aromáticas de cabeceira, revista TV, pudim em pó, biscoitos de canela e sopas instantâneas daquelas cuja imitação de marisco nunca deixa de lhe despertar no palato a obstinada nostalgia das férias de um Verão improvável à face de uma toalha de areia estendida à vista do mar do Tempo perdido. Na caixa, Susana caixeiramente paga.
Aos domingos, permite-se o luxo sensato de dormir duas horas mais, que pela semana vai descontando em clareiras de insónia. Acumula saldo no telemóvel: os recarregamentos periódicos obrigatórios empilham valor por gastar à razão directa dos telefonemas mudos que não faz. Todos estes anos, saiu e deitou-se um par de vezes com um médico quase local que fumava mais do que interessava, depois com um professor de Castelo Branco que era tímido e dotado de apostemas de acne como uma cartografia de pus geodésico, finalmente com um artista de stand de automóveis que era casado mas se esqueceu de lho dizer. Nada, enfim, nem de muito grave nem de premente notação cartorial.
Susana foi das raríssimas pessoas portuguesas que não integraram o rebanho de ir ver o Titanic: de amores afogados, sabia ela o suficiente para se poupar à descoroçoante evidência de tudo na vida descambar, mais cedo ou mais tarde, em naufrágio – e sem que algum ice-Adamastor de gelo-bergue seja preciso mandar vir pela pantalha espantalha dos sonhos filmados. Preveniu a tempo (tinha o filho onze anos) o cancro da mama esquerda, de que se fez arrancar sem hesitação nem remorso. Só depois telefonou à própria mãe a contá-lo, evitando a hipocrisia das lágrimas da velha, um crocodilo de cera que nunca lhe perdoou ter parido antes do casamento que aliás não chegou a contrair. Ao deitar-se, acende a vela perfumada, abre a caixa de bombons e esquece-se de si e do mundo com um livro fácil de literatura top-de-vendas. Em casa, Susana M. dá de comer ao pássaro e ao gato como, nas respectivas repartições, dá de comer à Segurança Social e ao IRS. Tem gato, pássaro, finanças e reforma em dia. Por tudo isto, é perplexo que vos confesso o meu absoluto desconhecimento quanto à razão pela qual o ministro Vítor Gaspar a odeia. A ela e às Senhoras que Não Dizem Mal umas das Outras, muito menos, e quanto mais, do Governo.  "

Susana M., senhora nossa conhecida, do Daniel Abrunheiro

O Porteirame e a liberdade de pensamento

A internet é um recanto de muita gente. Encontra-se de tudo.  Gente muito perturbada. Gente muito frágil.  Gente perversa. Gente simplesmente mal formada.
Um pseudónimo de escrita blogger é sagrado. Faz parte de uma identidade - a identidade virtual, que obedece a regras de convivência , ao direito de expressão aliado ao direito à privacidade. Ter um nick não é ser anónimo, é assumir uma identidade. Os escritores fazem-no muitas vezes.  O que se escreve num blogue  não é um registo autobiográfico. Quem escreve sabe que dentro de si vivem muitas vidas. Pessoa que o diga.
Mas a mediocridade das "redes sociais" espelha-se neste gosto pela devassa. A falta de inteligência também. E, nalguns casos, é mesmo  a perturbação psiquiátrica.  Uma certa incapacidade em separar o real do virtual. (Anos atrás uma pessoa que eu não conheço foi mesmo incomodadada com telefonemas e emails  de alguém que jurava que falava comigo.Coisas de doença descompensada). 
No entanto, por trás da devassa de certas  criaturas há algo mais sinistro -  o òdio à liberdade de pensamento.  A necessidade de escrever ataques pessoais, ainda que imaginários, já que não se consegue argumentar ideias.  Uma certa ideia de "classismo social" - a ideia de que só eu e os meus amigos e os gajos da minha tribo é que tem direito ao pensamento e à expressão pública. 
Esta gentalha que persegue os nick names  e usa insultos imaginários de rameiras envelhecidas   na blogosfera é perigosa.  

 
Não que eu  tenha alguma coisa a esconder.

 
Mas não gosto do lápis azul. Gosto de pensar em liberdade e escrever em liberdade.

 
BLUESMILE

 

Erros

Morreu uma senhora no Hospital de Braga por erro humano. Todos podemos errar, mas há erros inconcebíveis e uma morte assim é especialmente horrível.
 Questiono-me sobre a qualidade profissional dos técnicos que estamos a lançar no mercado de trabalho.
 Questiono-me sobre a  organização hospitalar que permite erros deste tipo. 
Questiono-me sobre a  pressão e sobrecarga de trabalho de tantos técnicos de saúde por causa dos cortes orçamentais e nos cortes no pessoal . Neste contexto os erros clínicos são mais prováveis.

Teúdas e manteúdas

A crise económica faz estalar princípios.

Ser poeta é ser mais alto

O escrevinhador de  histórias é um fazedor de mundos. Quem o lê fica aflito com as orelhas de entrudo.  Pensa em registos autobiográficos, avisos de morte.
O escrevinhador de  histórias limita-se a escrever paisagens.
 Alheias.
Toda a dor do mundo é minha.
È esse o meu fulgor.

Nós

"Faz hoje um ano que tomei uma caixa de Xanax, disse a mulher ao empregado do bar. Depois calou-se, estranhando as palavras que se tinham soltado da sua boca. Nunca ninguém lhe falava desse dia. Nem o marido. Nem os irmãos. Nem os pais. Nem a única amiga que tinha. Era como se não existisse. Como se outra, que não ela, tivesse naquele dia rondado o bairro de Chelas à procura de espantar a dor para os homens que, sonolentos, despertavam para a manhã. Como se outra, que não ela, tivesse escutado os renhaus dengosos que as mulheres lhes lançavam das janelas dos prédios de habitação social. No fundo, aquele dia só existia para ela, para mais ninguém. Por isso o celebrava sem que os outros soubessem, bebendo ao final do dia, num bar da rua de São Paulo. O empregado do bar voltou e pousou no balcão um copo triangular, com gelo moído e hortelã fresca. Sorriu-lhe de forma profissional, asséptica, como a querer dizer-lhe olhe que eu também tenho os meus problemas, não estou com disposição para confissões. Mas a mulher não o percebeu. Ou fingiu não o perceber. É triste uma pessoa falhar até na morte, não acha? E, sem esperar pela resposta, começou a chupar o sal dos bordos do copo.
(Faz hoje precisamente seis anos que tentei matar-me e, hoje, o médico da medicina do trabalho disse que eu era uma mulher bonita, tem três filhos, dizia, uma profissão, mas tantos nós por desatar. Aconselhou-me psicanálise. Não quero desatar os meus nós, gosto deles assim, cegos, brutos, alimentam-me. Tive vontade de o mandar para o caralho.)"

Cigarros

Ainda hoje, há dias que me custa não fumar. Dou por mim a inalar fumo de cigarros alheios, nas esplanadas,  como um qualquer viciado a ressacar.
E os isqueiros fascinam-me como a um pirómano. Não é só a nicotina, é  todo o ritual. Desembrulhar o maço, tirar o cigarro. Acender um cigarro solitário ao fim do dia, a comtemplar o mar. Acender um cigarro de madrugada a comtemplar o mundo. Acender um cigarro à varanda, no intervalo do relatório que é preciso acabar. Inalar o primeiro fumo, de uma só baforada.

domingo, outubro 21, 2012

É Sexta-feira

Os corredores da faculdade são luminosos. À porta, os miúdos do BE juntam-se com os poetas de bairro.  Alexandre está sentado no segundo degrau a ler Nietzsche no iPad ao lado das pinturas do  Almada Negreiros. No enorme relvado em frente  um bando treina contorcionismos vários.  A Faculdade de Letras sempre foi assim. Gosto deste ambiente. Apago o cigarro antes de entrar.

Leo

O Leozinho anda todo excitado com as alcovas místicas. Anda acomer pouco. Miquelina passeia-o ao fim da tarde, assim que ele acaba a novena em latim. Veio de  França há uns dias onde lhe disseram que o tão cobiçado tacho eclesiástico estava perdido.  O Vaticano continua agarradinho ao concílio vaticano II como uma lapa.  Leozinho ficou perplexo. Encanitado mesmo. De nada lhe tinham valido as novenas, os milhões de rosários, as prosápias bloguistas, os conciliábulos de sacristia, as trocas de emails com confidentes e alcoviteiras encontrados na Internet.
Miquelina foi-lhe buscar o casaco de couro, com cheiro antigo e obrigou-o a levantar a gola.
Arrefeceu de repente .

Iliteratos

O  engenheiro informático que me estava formatar o computador não conseguiu perceber o desenho do Google. Nunca na vida tinha ouvido  falar de Moby Dick.
Trabalha compulsivamente 12 horas por dia na minha  empresa,  que o contratou a prazo. Tem 31 anos.  Não sabe quem é Hemingway. E não se lembra da última vez que leu um livro.

sexta-feira, outubro 19, 2012

Daixai vir a mim as criancinhas

O escândalo de uma rede que roubava crianças a mães nas maternidades para as fornecer/vender a  casais sem filhos, durante a ditadura franquista. Mais de 300 000 bebés foram roubados aos seus pais.

A rede criminosa era também constituída por padres e freiras.

quinta-feira, outubro 18, 2012

Fêmeas

A mulher olhou-me de alto abaixo com ar reprovador. Foi um pequeno tique, quase imperceptível, um ligeiro fechar de olhos desagradado, um esgar territorial. Penso que foi por causa do meu casaco novo. Nunca a tinha visto por ali.

Frase do dia

"Ai de vós, doutores da Lei e fariseus hipócritas, porque pagais o dízimo da hortelã, do funcho e do cominho e desprezais o mais importante da Lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade!".

Os doutores da lei e os padres do templo fartaram-se de levar pancada do JC. Pancada verbal, é certo, quase tão violenta como o chicotear dos usurários do divino. Padres, Banqueiros e doutores da lei, olhem só com quem JC se meteu. Assim que puderam, fizeram uma santa aliança e trataram de o matar. O carpinteiro subversivo só podia ser crucificado. Nunca disse uma palavra em latim nem consta que tivesse biblioteca.

Orçamento de Estado

Perguntava o sargento gaiteiro:
. Para onde vamos e o que tocamos, meu general?
- Bardamerda e caladinho, respondeu garbosa e educadamente o general



quarta-feira, outubro 17, 2012

Luto antecipado

Vai-me custar deixar este blogue.

Variações climáticas

Neste momento não consigo ler livros quentes. A classificação de "livros quentes" nada tem de erótico, podem até ser livros monásticos.
Falo da experiência sensorial que os livros me provocam. Outros leitores compulsivos talvez entendam o que sinto.Por estes dias ando enfadada de livros de outras latitudes, com paisagens cálidas ou desérticas, descrições de ventos mistral, corpos suados, praias ou calores infernais.
Fujo dos escritores latinos como o diabo da cruz.
Não sei explicar porquê.

Outono

Durante anos dava este erro ortográfico. Outouno.
Primeiro por convicção a palavra Outouno só pode ser escrita/vivida assim,  com esta sonoridade alongada das primeiras chuvas, das botas a pisarem folhas, dos gorros tirados das gavetas, do cheiro da primeira lareira do ano.
Depois por distracção .

terça-feira, outubro 16, 2012

ESPERANÇA

"Foi o Vaticano II que colocou o destino da Igreja nas mãos de todo o povo de fiéis, para o diálogo, por dentro e por fora, na certeza de que o diálogo só faz sentido se promover a renovação necessária das estruturas. Fazer aggiornamento tem hoje uma dimensão mais ampla e transversal do que a pensada pelo papa João XXIII.
Há outro apelo à coerência evangélica num tempo ritmado pela dinâmica mediática: é possível “ser” mensagem de Esperança abdicando da coragem para a denúncia, da palavra “profética” e lúcida na hora certa, com os meios possíveis, as oportunidades que promovem a acção concreta, renovando a proposta do humanismo cristão?
O passado pode ser tentador, mas uma renovação implica rever as origens sem voltar para trás. Pelas narrativas bíblicas, os cristãos são chamados à ruptura em nome de um bem comum - olhar primeiro para os“últimos” - impulsionados por uma “pessoa” que lhes deu um Sentido e se fez mistério de fé nas circunstâncias da história. As primeiras comunidades cristãs abriram-se à Vida com os pés na terra. Capaz de derrubar os impossíveis que atormentam, o primeiro diálogo ecuménico na história deste “seguimento” foi o da Solidariedade. "

João Franco

A minha menina

A menina ficou sentada com fome, na cantina ,  a ver os outros meninos comer.
Os pais da menina deviam trinta euros da mensalidade da escola. Trinta Euros. O almoço dos outros meninos durou trinta minutos. Trinta minutos de fome, a cheirar a comida que os outros engolem. A ela, não a deixaram comer.
Tem cinco anos, a menina.  Uma menina de cinco anos é a coisa mais preciosa do mundo.
Todos  sabemos isso.
As meninas de cinco anos são muito mais do que só meninas, são pequenos  pássaros do futuro.
Tudo o que esperamos de bom,tudo o que existe de mais doce, tudo aquilo porque vale a pena lutar, sonhar acordado, aguentar, sorrir, tudo isso e muito mais que não foi imaginado ainda,  cabe nos olhos de todas as meninas de cinco anos. A minha menina. Sim, que esta menina também é minha. A fome da menina é a minha fome.A fome da minha menina.
Não admito que no meu país haja meninas de cinco anos a passar fome. 


Nota - parece que afinal a menina não ficou na cantina a ver o outros meninos comer.Foi separada dos seus coleguinhas e mandada para uma sala sozinha e ficou a pão e água ( ou pão e pacote de leite, que é o mesmo). A fome é a mesma. A punição é humilhante ígualmente e estúpida. Não há justificação para isto, nenhuma, nem legal, nem económica nem burocrática. Por isso vou manter o texto. Porque a crueldade não tem perdão.

Hoje

O que fazer face à guerra?

Viagens imaginadas

Rosarinho nunca viajou. Passou trinta anos da sua vida agarrada à secretária da repartição de finanças. Amansou um marido, criou dois filhos, tratou dos pais envelhecidos, manteve imaculadamente limpo o T2 no lavradio,  gastou a juventude a correr entre limpezas, compras,  remédios e máquinas de calcular.
Rosarinho tem um pequeno vício. Adora viajar. Durante trinta anos acumulou prospectos de agências de viagens, informações de sítios exóticos, livros sobre cidades onde nunca pôs os pés. Recentemente rendeu-se à Internet. Quando os colegas de trabalho ou familiares querem saber informações sobre um sítio qualquer ou um destino de férias, vão ter com a Rosarinho. Sabe (literalmente), de tudo sobre os destinos mais distantes. Costumes locais, horas de voo, as melhores comidas, os sítios a evitar, moeda, trajectos turísticos, historietas , geografia. Rosarinho nunca saiu de Portugal. Durante anos fez projectos de longuissimas viagens. A ìndia, las vegas, capadócia, ilhas da páscoa, roma, burundi. Há sítios do mundo que lhe são mais familiares que as ruas do bairro onde vive.
O ano passado comprou um Moleskine por ouvir dizer que era o caderno dos viajantes infatigáveis.
E todas as tardes, enquanto atravessa o Tejo,  de volta a casa ( antes dos tachos, montes de roupa suja e sanitas por limpar), Rosarinho, agarra no Moleskine e escreve memórias sobre todas as viagens que já fez.
Viagens imaginadas.
As suas.

segunda-feira, outubro 15, 2012

O sótão

Carreguei o computador escadas acima até ao sótão como quem carrega um corpo. A partir do segundo andar - escadas de madeira circulares - o PC começou a pesar cada vez mais. . Quando me sentei à janela, pertinho do céu, estava transpirada. Abri o teclado sobre o parapeito, e rente aos telhados das casas fiquei a escrever poesia até a luz se desvanecer.

sábado, outubro 13, 2012

Os ricos

No supermercado continente as senhoras fazem fila para ler a revista Flash.
Quando passo na caixa espreito para a capa. Um tal senhor Rangel fala mal de uma senhora morta que foi sua mulher. Atira o cadáver ao pasto dos olhos ávidos da populaça.
Muito triste. Muito rasco. Muito pequenino.
As senhoras do bairro suspiram de alívio e consolo. É uma  alegria  ler tanta sujeira.
Afinal, a vida das senhoras  ricas é igual à delas. E ás vezes a morte é um pouco pior.

Viajantes

Gosto de andar de combóio. Sinto uma espécie de embriaguês com a paisagem- os fundos das casas, os quintais invisíveis a descoberto, as praias inacessíveis, os pinhais, o rio douro lá em baixo, as vinhas carregadinhas de outono, as pessoas apanhadas de surpresa na sua vida esconsa e tímida, os espreitadores de janelas, os que sonham, os que ficam a ver passar combóios, os que acenam tímidos adeuses.
Ao meu lado o homem japonês de camisa branca lê um livros de promoção turística sobre Portugal. È extraordinariamente alto, para um nipónico, tem um belo rosto fechado e uma cabeça rapada com um formato estranho- a parte de trás do cranio é completamente plana, como se tivesse passado parte da infãncia com a nuca encostada a uma tábua. O combóio ronrona e ele adormece, com o rosto caído sobre o peito. A mão esquerda agarra convulsivamente uma garrafa transparente onde um líquido verde sacoleja ao som do combóio. Dentro da garrafa agita-se uma sombra. Estico as pernas até tocar o banco da frente. A sombra da garrafa perturba-me. Primeiro pensei que era uma alga ou uma planta e que a garrafa tinha uma espécie de chá dietético.

Depois fiquei intranquila- a sombra esverdeada parecia uma batráquio em decomposição.

50 anos é pouco tempo

"Os documentos do Concílio Vaticano II, que começou há 50 anos, permanecem sempre a bússola da Igreja no meio das tempestades". Bento XVI.

quinta-feira, outubro 11, 2012

Homenagem a Nuno Grande

"Um médico que só sabe Medicina, nem de Medicina sabe".

Cinquenta anos é pouco tempo

Precisamente hoje é o 50 aniversario do Concilio Vaticano II (1962-1965), um evento eclesial que revolucionou a Igreja  Católica e lhe abriu as portas para o terceiro milénio.
Meio século depois, a extraordinária riqqueza dos textos produzidos continua a não ser plenamente  compreendida. Foi um dos acontecimentos mais marcantes do Século XX, que superou todas as expectativas, rompeu com uma igreja tridentina  de quatro séculos e mudou radicalmente a relação da Igreja com a sociedade e com as outras religiões.
Bento XVI recordou esta semana  que os  anteriores concilios se centraram em erros de fé, para corrigi-los o condená-los, mas que o Vaticano II  foi convocado por João  XXIII sem que houvesse  específicos problemas de doutrina ou disciplina a clarificar. O papa  sabia apenas que havía que renovar a Igreja Católica. A  palavra chave era "aggiornare", ou seja, pôr em dia..
E foi nesse  "espírito de alegria, de mudança, de uma igreja viva que olhou para o mundo", como Bento XVI recordou hoje, que abriu o Vaticano II , no dia  11 de Outubro de 1962, na basílica de S- Pedro, com a presença de 2.540 obispos de todo o mundo.

aqui

Futilidades

Nos dois últimos dias usei o meu colar de pérolas . Tem um delicado fecho debruado a pequenas pedras preciosas. É a única jóia que adoro usar, uma prenda especial. Nunca uso brincos, nem anéis ( a não ser  a aliança de casamento), nem sequer aquelas pulseira cheias de ferniquoques. Gosto das pérolas.  Ficam bem na pele de uma mulher.

Toda a gente escreve livros menos eu

É uma espécie de epidemia. Já não falo dos "gost writers" publicitados aos montes (So you want to write a book, but you don't know how. Hire a ghost.). Falo dos pseudoescritores. Que vendem.
Eu  não vendo. Amontoo cadernos em gavetas. De vez em quando atiro uns para o lixo. Custa-me sempre rasgar as páginas, mas faço-o, uma a uma, em mil bocadinhos. Mesmo assim tenho uma gaveta. Algumas estantes. 
È mais fácil deitar fora pastas do computador.

domingo, outubro 07, 2012

CISMA DEFINITIVO

Não é possível o retorno dos  lefebvrianos à Igreja Católica. Depois de morosas e tensas conversações e de algumas cedências ( inúteis) feitas pelo Vaticano aos cismáticos seguidores de Lefebvre,  a  Santa Sé veio oficialmente publicitar a total ruptura de quaisquer negociações tendentes à reintegração do membros da (FSSPX) no seio da igreja católica. O anúncio foi feiro pelo recém nomeado responsável da  Congregação para a Doutrina da Fé, monsenhor Gerhard Ludwig Müller . Em causa estão   as posições irredutíveis dos cismáticos face ao Concílio Vaticano II que estiveram  na origem do Cisma e da excomunhão do fundador da seita e se mantêm hoje,  apesar dos esforços do actual papa.





sábado, outubro 06, 2012

"Odeio Bichas Modernas" - Barrigas de aluguer - Estado de GRAÇA



A caricatura da “bicha tradicional” versus a “bicha moderna “ é genial.  A sátira retrata um fenómeno comum – os maiores detractores dos direitos dos homossexuais são muitos homossexuais que não aceitam nem vivem bem com a sua sexualidade. Retrata também genialmente um facto:  também nas questões da sexualidade, mais do que questões genéticas ou biológicas , são os “marcadores “ culturais e económicos de pertença que plasmam os comportamentos e as ideologias.

Estado De Graça - CASAMENTO BICHAS MODERNAS

"As bichas modernas e a adoção" - Estado de GRAÇA

Futilidades

Desta vez acordei com vontade imensa de comer um pastel de coco.  Não daqueles pequeninos e xonés pintalgados de açucar , mas os pastéis verdadeiros, enormes,  a pingarem recheio de coco.
 Fui a três pastelarias. O que foi bom. Foi o meu passeio matinal sob um sol delicioso nas ruas ainda sem trânsito. Mas não havia pastéis em lado nenhum. Até hoje, não sabia que os pastéis de côco da minha infãncia estavam em vias de extinção. Acabei por comer um ratinho de chocolate preto, com bigodes de fingir.
E li o Pùblico, para controlar o apetite.

Morfeu

Sonhei que estava a parir. Um sonho recorrente,  de todas as mulheres que já engravidaram.
Desta vez o sonho foi muito nítido. Enquanto me esvaía em sangue, uma estranha consciência me invadiu as vísceras. Não sentia a mínima dor.
 E isso, no meu sonho, provocou-me um pasmo agradecido.

Os vendilhões da pátria

A minha bandeira de pernas para o ar foi mais que um agoiro simbólico.
Foi uma metáfora dos que a manipulam e tratam  a minha pátria como se fosse mercadoria, sujeita rankings de usurários.

quinta-feira, outubro 04, 2012

Os psicopatas das touradas

"Como bem sabem os aficionados, nem todos os touros são mortos nas arenas onde é permitido matar. Os animais que revelam excepcional bravura são poupados. Não se trata de um acto de misericórdia, mas apenas de um processo de selecção dos exemplares mais bravios para futura reprodução.O El Mundo publicou há dias um artigo sobre Ingrato, um touro de 530 quilos que foi indultado na arena de Nimes, no sul de França. Quem aprendeu a assimilar esta cultura feita de elipses, desde logo a que elimina a consciência do sofrimento dos animais que fazem a festa, dificilmente terá passado dos primeiros parágrafos.
Neste artigo conta-se que durante a corrida Ingrato perdeu 25 quilos e que dias depois, quando regressou a "casa", em Sevilha, já teria abatido mais 50. Nova viagem na camioneta que o transportara anteriormente para a arena ter-lhe-á despertado tal pavor que deixou de comer. Mas bebia. Bebia compulsivamente devido à desidratação sofrida durante o toureio, provocada pela intensa sudação que o stress e o sofrimento lhe induziram e também porque lhe subiu a febre aos 43 graus.Dos ferimentos que resultaram da lide, dois apresentavam-se particularmente fundos, com 35 cm e 22 cm. Os que foram provocados pelas seis bandarilhas que lhe espetaram tinham "apenas" 10 cm cada. Ingrato foi sujeito a tratamentos com antibióticos e desinfectantes e passados 120 dias ainda se encontra em recuperação. Tantos cuidados têm um único objectivo, o de lhe enfiarem no recto um tubo até à próstata assim que estiver em condições. Esse tubo, ligado a uma bateria eléctrica, disparará pequenas descargas por forma a induzir-lhe uma ejaculação. O sémen recolhido será depois enviado para análise. Se o trauma da "festa" não lhe tiver afectado a fertilidade, então sim, poderá gozar mais uns anos de vida na companhia de meia dúzia de fêmeas simpáticas e bem parecidas.Ingrato será, assim esperam os criadores, replicado em toda a sua pujança, assegurando uma estirpe que mais tarde lutará desesperadamente pela vida no meio dos gritos e das palmas de gente que sabe apreciar a beleza de uma chicuelina. Gente que sabe preservar as tradições porque partilha com os nossos ancestrais a paixão pelas lutas de morte e rituais de sangue. Gente que ferve quando assiste ao jogo sensual do predador a brincar com a presa e partilha com deleite o silêncio religioso que precede o momento do sacrifício da vítima.A bravura do toureiro que encarna, no seu traje de luces, a superioridade da raça humana é o espectáculo. Que adrenalina vê-lo aos poucos a vergar a besta, a estocá-la com elegância e requinte. Quanta testosterona em cada farpa. Algumas penetram fundo no lombo. Há golpes que chegam aos 35 cm de profundidade, se calhar até mais. É sublime esta catarse colectiva, não é? Olé!"




Ontem

Houve alturas em que a minha magreza me irritava. Tenho uma fotografia de perfil, com 12 anos, dois puxinhos a enquadrar um rosto esquálido , a boca redonda e uns olhos extraordinários de doçura enorme a saltarem da cara .Essa fotografia dava-me ferniquoques, por causa dos dentes incisivos ainda mal alinhados. E da magreza do queixo, tão fino. A avó aborrecia-me por não ter bochechas para beijar. Ao contrário  dos outros netos,gorduchos e comilões, com carinhas de bebé cerelac, eu era uma miuda sem grandes apetites, ligeiramente enjoada, que odiava sopas, leite gordo e nunca, mas nunca mesmo, comia carne de porco.
Lembrei-me disto quando a Francisca , hoje, à hora de almoço me disse que tem saudades de correr.
A obesidade mórbida não a deixa sequer subir escadas.

Leitura obrigatória

Vagina: Uma Nova Biografia  - de Naomi Wolf.